O som das ruas

Vertentes diferentes do punk rock surgidas depois da explosão do gênero em 1977, que muitas vezes se mesclavam, evitaram uma morte prematura do gênero

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por Ivan Conterno

O texto abaixo é a quinta parte da série “Grito de ódio: uma breve história do punk“.

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O saldo positivo da efervescência de 1977 foi que todo e qualquer moleque – ou não tão moleque assim, como no caso de Charlie Harper que citamos na semana passada – e toda garota tinha perdido o pudor de tocar suas próprias músicas, escrever sua própria revista, criar seu próprio visual, mesmo que eles não fossem nada refinados. Segundo J.C. Carroll, dos Members, uma banda punk inglesa da época, “o segredo do punk era que todo mundo tinha uma canção realmente boa dentro de si.” 

Mas foi uma verdadeira explosão em 1977 e o movimento punk passou a se fragmentar após a rápida expansão. Os Sex Pistols, proibidos de tocar no Reino Unido, haviam percorrido a Escandinávia e a Holanda, insuflando o punk rock nesses países. Em janeiro de 1978, a banda se separou durante a turnê pelos Estados Unidos. Steve e Paul passaram a tocar com os músicos de hard rock do Thin Lizzy, formando os Greedies, enquanto Johnny Rotten chamava Don Letts para conhecer a Jamaica, deixando os punks órfãos dos principais ídolos.

O pesadelo acabou

“O punk está em declínio, está morto!” declarou o vocalista dos Buzzcocks, Pete Shelley, em maio de 1978. O Clash finalmente era lançado nos Estados Unidos. Naquele ano, tanto a radicalização das posições políticas quanto o público da banda cresciam, o que é uma combinação rara. No entanto, a banda se afastava do público inicial, passando a tocar em grandes eventos e variar cada vez mais o som do grupo. “Acho que temos que formar nossa própria cultura, a cultura de hoje, e acho que coisas como o punk rock estão ajudando a fazer isso”, dizia Billy Idol. “Mas ainda estamos vinculados a algo no passado.” Os punks haviam condenado as estrelas do rock’n’roll, mas agora os Buzzcocks, os Ramones e o Clash já formavam uma nova constelação ao lado de outras da música pop. Em 1980, sairia o disco dos Ramones produzido pelo lendário produtor dos Beatles Phill Spector, para o desgosto dos fãs.

A cena também já estava se fragmentando graças à rápida mutação do próprio som punk. Na Irlanda do Norte, os Stiff Little Fingers cantavam sobre a guerra, mesclando seu punk rock com reggae, enquanto os Undertones assumiram uma postura oposta, falando sobre garotas com um punk chiclete inspirado na soul music dos anos 60. Muitas bandas irlandesas de punk rock em 1978 beiravam o power-pop, um gênero que ganhava as rádios na época. 

Brigas, futebol e cerveja

Enquanto isso, os jovens punks, que viviam o estilo de vida rebelde nas ruas, estavam se sentindo enganados. Diferente dos punks do Bromley, o público criado pela explosão de 1977 não era mais parte da classe média decadente. Eram jovens da classe operária que tinham passado pelas borstals (a Febem da Inglaterra) e agora viviam de seguro-desemprego quando não trabalhavam nas fábricas. Parte deles adotavam um visual cada vez mais agressivo, com rebites, moicanos e artefatos de couro, mas uma parte também se recusava a se vestir assim.

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Capa do zine Sniffin’ Glue com o Sham 69. Imagem: reprodução

O Sham 69 foi o primeiro grupo a capturar esse espírito. A banda começou tocando na Roxy e logo, sem ter a pretensão, deu impulso ao ressurgimento do movimento dos jovens operários ingleses do final dos anos 60 que ouviam reggae, vestiam botas e raspavam os cabelos: os skinheads. Vários jovens punks abandonaram o visual inicial para raspar os cabelos e vestir suspensórios acompanhando os shows. O nome da banda era uma referência à vitória do time de futebol Walton & Hersham em 1969. As músicas inclusive pareciam hinos de torcida.

Ao contrário do que foi propagado pela imprensa nos anos seguintes, inicialmente os skinheads não tinham relação com grupos de extrema-direita. Ocorre que, nesse final dos anos 70, com o ressurgimento das gangues com esse visual através da onda punk, o National Front recrutou uma minoria dos jovens com esse estereótipo para militarem na causa nacionalista britânica. Os autênticos skinheads, pelo contrário, eram entusiastas da cultura jamaicana, sendo constantemente exaltados por artistas do reggae e do ska. Foi nesse espírito que os Ruts surgiram e ressuscitaram o punk rock da UTI com doses cavalares de dub (uma espécie de reggae mais lento).

Da mesma forma, no interior da Inglaterra, um adolescente que trabalhava nas minas chamado Mensi e seu amigo eletricista formaram os Angelic Upstarts após presenciarem uma apresentação do Clash, em 1977. Os dois recrutaram um amigo padeiro para tocar bateria e outro pedreiro para o baixo. Para tomar conta dos negócios da banda, os quatro chamaram Keith Bell, um ex-gangster que já tinha sido campeão de boxe. Keith era uma espécie de empresário e guarda-costas ao mesmo tempo, garantindo a segurança da banda.

Os Angelic Upstarts. Imagem: reprodução

Os Angelic Upstarts atraíram a ira da polícia local e dos fascistas do National Front ao comprarem a briga do pugilista amador Liddle Towers, que morreu após ser espancado na cadeia. “The Murder of Liddle Towers” – acompanhada por “Police Oppression” no labo B – foi o primeiro single da banda. No entanto, o crescente apoio da revista Rebel, do trotskista Socialist Workers Party (Partido Socialista dos Trabalhadores), que chegou a colocá-los na capa, sufocou momentaneamente a perseguição. Embora fossem apoiados pelos trotskistas, Mensi chamava os punks a votarem no Partido Trabalhista contra a política anti-sindical de Margareth Thatcher.

As ameaças passaram a ocorrer por meio de batidas policiais, processos e fechamento de casas onde eles iriam tocar. Mas a banda contornou a intimidação conseguindo tocar numa prisão onde Keith tinha cumprido pena, em Acklington. Os presos estenderam faixas nas quais se liam “Upstarts Army” com um punho cerrado e o lema “destrua a lei a ordem”, além de um porco vestido de policial. Nesse dia, a banda tocou uma versão de “Borstal Breakout” (fuga da borstal), do Sham 69, rebatizada como “Acklington Breakout” (fuga de Acklington).

A identificação dos Angelic Upstarts com o Sham 69 foi imediata. As duas bandas passaram a tocar juntas nos festivais Rock Against Racism usando os adesivos do Socialist Workers Party. Era o começo de algo diferente, uma variante mais operária do punk rock. Eles tinham muito pouco em comum com os punks estilosos de 1977. Os seus fãs apresentavam a banda como sendo real punk (punk verdadeiro), ao contrário das bandas anteriores que de certa forma atuavam para parecerem maus e perigosos. Mas, ao contrário de uma ruptura, eles apenas remodelaram a própria cena anterior, dando uma sobrevida a ela. Além de subir ao palco com o Clash; com o fim dos Sex Pistols, Jimmy Pursey, do Sham 69, chegou a cantar com Steve e Paul num projeto chamado Sham Pistols.

Quanto ao crescente movimento neonazista, embora não fossem tão bons de briga, os Angelic Upstarts chegaram a atirar em alguns desafetos, gravando inclusive uma música a respeito disso: “Shotgun Solution”. Jeff Turner, dos Cockney Rejects, outra banda dessa nova onda, dizia que se alguém aparecesse nos shows para sair no soco, eles sairiam no soco. Dito e feito: quando um bando de debiloides ligados ao “British Movement”, da extrema-direita, atacavam os punks nos shows dos Cockney Rejects, eles revidavam, quebrando os nazis na porrada. 

Os Cockney Rejects eram torcedores fanáticos do West Ham. Um dos grandes sucessos da banda foi uma versão do hino do time, “I’m Forever Blowing Bubbles”, que alcançou as paradas durante a copa da Inglaterra em 1980. Embora não fossem tão ligados à política como os Angelic Upstarts, a banda fez shows beneficentes em apoio à Preservation of the Rights of Prisoners, organização que liderava greves e protestos de detentos. Esse novo estilo foi batizado pelo jornalista Gary Bushell de oi!, que não era nada mais que um grito de saudação usado nas ruas, mas também ficou conhecido como street punk. Gary organizou 3 compilações de bandas oi!, essenciais para a nova explosão que aconteceria em 1982.

Não à guerra!

Paralelamente a isso, os anarcho punks criavam sua própria cena pregando o pacifismo. Liderados pelo Crass, o movimento era contrário aos partidos e se opunham ao Rock Against Racism. Isso ficou mais claro quando o Crass culpou os militantes trotskistas e outros antifascistas de terem desencadeado a violência contra os neonazistas do “British Movement” nos shows. Os anarcho punks diziam que os esquerdistas eram os principais culpados pela violência e as organizações como o Rock Against Racism estavam causando a polarização do público em facções de esquerda e direita.

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Ao contrário do oi!, as bandas do anarcho punk propunham uma vida no campo e uma dieta vegetariana. O pacifismo, no entanto não evitou que o movimento sofresse com a violência fascista. A música “Bully Boys”, do Poison Girls, que criticava o machismo violento, levou a banda a ser atacada pelos membros do National Front durante uma apresentação. Embora fossem reservados, a filosofia e a musicalidade dos punks pacifistas influenciou diversas bandas de pós-punk como The Cure e Bauhaus.

O punk patético

No começo dos anos 80, o humor tomou conta do público punk, com bandas como Splodgenessabounds, Peter & The Test Tube Babies, Toy Dolls e Adicts. Para Max Splodge, dos Splodgenessabounds, essas bandas eram o outro lado do street punk: “nós também somos da classe trabalhadora, porém enquanto algumas bandas cantam sobre prisões e desemprego, nós falamos de sardinhas e bundas”.

Cada vez mais pesado

Nos Estados Unidos, o punk rock se reinventava com o hard core criado pelos Bad Brains na capital do país e desenvolvido pelas bandas da California. Como não conseguiam tocar bêbados, os Bad Brains simplesmente começaram a tocar nas festas um som punk mais rápido para conseguir encher a cara antes da bebida acabar. Em 1982, foi a vez do d-beat tomar conta da cena, com um som mais pesado e visual mais agressivo. Todas essas vertentes, que muitas vezes se mesclavam, evitaram uma morte prematura do punk rock. Ao contrário de movimentos passageiros anteriores como o glam rock e o pub rock, o punk teve sobrevida e se enraizou na cultura popular graças a essas releituras. 

O Clash, por sua vez, ampliava sua influência e definiria toda a música pop dos anos 80. O Clash foi a inspiração pra toda uma terceira onda skinhead a partir das bandas de ska 2 tone (de negros e brancos ingleses). Todas as produções new wave e toda a moda dos anos 80 foi inspirada no que o Clash experimentou no álbum triplo Sandinista!, de 1980. O pontapé final veio em 1982, com os dois maiores hits da banda: “Rock the Casbah” e “Should I Stay or Should I Go”.

As bandas que haviam surgido nos outros países da Europa em 1977 continuavam se alimentando dessas novas tendências. Esse foi o impulso definitivo para que o punk rock se perpetuasse pelas longas quatro décadas seguintes. A partir daí veremos o surgimento de zines de circulação internacional regulares e o surgimento de uma rede mundial de correspondência entre os punks, antes mesmo do surgimento da internet.

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Punks de Portugal no anos 80. Imagem: Paulo Heleno

A partir da semana que vem veremos essa projeção no longo período, percorrendo quase 4 décadas de punk rock.

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