Não há modo de descrever um sistema sem recorrer ao vocabulário da arquitetura, mas nos últimos meses o uso da palavra “arquitetura” tem causado polêmica

Recentemente, o Conselho Federal de Arquitetura e Urbanismo – CAU/BR – manifestou-se contra o uso do termo arquitetura em expressões negativas. Na visão do Conselho, por exemplo, não há “arquitetura hostil” mas sim “desurbanidade, uma cidade hostil, desumana”. Na última semana, a autarquia voltou a se pronunciar contra o uso da palavra Arquitetura na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a pandemia de Covid-19 no Senado Federal. Apurou-se que havia uma “arquitetura ideal” da corrupção e uma “arquitetura do crime”. O CAU/BR oficiou a CPI sugerindo que os parlamentares não usassem tais expressões em seu relatório final, pois “a Arquitetura (…) é uma profissão honrada que muito têm contribuído para o desenvolvimento do país, inclusive no que diz respeito à saúde pública”. Mas será mesmo possível evitar o uso de metáforas arquiteturais?
Metáforas arquiteturais
por Denis Hollier,1 com tradução de Danilo Matoso
Livros não se fazem como crianças, mas como pirâmides
Flaubert para Feydeau, 1858.
As “tarefas” levadas a cabo pela palavra “arquitetura” certamente têm mais importância que seu significado. Quando se discute arquitetura, nunca é simplesmente uma questão de arquitetura; as metáforas que brotam, resultantes daquelas tarefas, são quase inseparáveis do significado correto do termo. O significado correto, ele mesmo, permanece de algum modo indeterminado – o que é ainda mais surpreendente, já que ele é associado a tarefas extremamente claras e urgentes. A Arquitetura diz respeito a qualquer coisa em um edifício que não possa ser reduzido à construção, qualquer coisa que permita a uma obra escapar de interesses puramente utilitários, qualquer coisa estética sobre ela. É esse tipo de acréscimo artístico que, por meio de sua adição a uma simples construção, constitui a arquitetura, se encontra de partida preso num processo de expansão semântica que força aquilo que se chama de arquitetura a ser apenas o locus geral ou a estrutura de representação, sua base. A Arquitetura representa uma religião que ela traz à vida, um poder político que ela manifesta, um evento que ela comemora etc.. A Arquitetura, antes de qualquer outra qualificação, é idêntica ao espaço da representação; ela sempre representa algo além de si mesma a partir do momento em que se distingue de mera construção.
Essa infiltração de uma situação metafórica irredutível, em que a Arquitetura se define como representação de algo diferente, se estende à linguagem, onde as metáforas arquiteturais são bastante comuns. Há a fachada, geralmente ocultando alguma realidade sórdida; há o segredo, a própria arquitetura oculta que se descobre nas obras de arte aparentemente mais livres, nos seres vivos e na verdade em todo o universo, quando se percebe o plano unificado do criador; os pilares não são todos literalmente os pilares da igreja; pedras angulares protegem do colapso os sistemas – sejam eles políticos, filosóficos ou científicos –; isso para não falar dos fundamentos etc. etc.. Essas metáforas são inevitáveis demais para que as vejamos como recursos literários almejados. Sua natureza de clichê e seu anonimato são, no entanto, um indício de que elas não são inocentes mas sim que cumprem subrepticiamente alguma função ideológica da qual são instrumentos. Pouco importa que ainda se discuta significado correto de arquitetura. O essencial aqui é que ela sempre cumpre sua tarefa. Nenhuma metáfora é inocente; e quanto menos ela é artificial, menos é inocente; Sua autoevidência é o solo firme sobre o qual o pensamento pode caminhar em segurança durante o sono.
Hubert Damisch demonstrou que o Dictionnaire de l’architecture française de Viollet-le-Duc seguiu um método analítico estruturalista (o mesmo depois desenvolvido por Saussure e os linguistas) antes mesmo que o termo fosse inventado.2 Essa homologia não é pura coincidência. Ao invés de ver o discurso do arquiteto como uma preformação daquele do linguista, a homologia demanda na verdade que a análise linguística seja pensada como algo dominado pela importação do vocabulário arquitetural. O próprio termo “estrutura” não é a menor das evidências. O fato de que ele seja hoje usado para descrever praticamente todas as organizações e todos os sistemas só demonstra a extensão de seu domínio.
(In memoriam. A metáfora aqui será tomada de empréstimo a Jacques Lacan em seu elogio a um “edifício”: a obra teórica de Ernest Jones, para contrastá-lo com o pragmatismo reinante no que ele chama de “edifício” psicanalítico profissional. “Este edifício nos atrai. Apesar de metafórico, ele é perfeitamente construído de modo a recordar-nos o que distinguia a arquitetura da construção: isto é, um poder lógico organizando a arquitetura mais além de qualquer coisa que o edifício suporta em termos de uso possível. Além do que, nenhum edifício – a não ser que reduzido a um barraco – prospera sem essa ordem que o alia ao discurso. Esta lógica coexiste harmoniosamente com a eficácia somente quando a domina, e na arte da construção sua divergência não é só uma possibilidade”.)3
Consequentemente, não há modo de descrever um sistema sem recorrer ao vocabulário da arquitetura. Quando a estrutura define a forma geral de legibilidade, nada se legitima a não ser quando submetido à malha arquitetural. Sob essas condições, a arquitetura é a arquiestrutura, o sistema dos sistemas. Pedra angular da sistematicidade em geral, ela organiza a harmonia entre as linguagens e garante legibilidade universal. Templo do significado, ela domina e totaliza as produções significantes, forçando-as todas à redução à mesma coisa, para confirmar seu sistema noológico. A arquitetura é um empréstimo compulsório que pesa sobre toda a ideologia, hipotecando de partida todas as suas diferenças.
É como se, ao permitir a si mesmos a nomeação metafórica por um vocabulário emprestado da arquitetura, os vários campos da produção ideológica desvelassem uma vocação unitária. Essa metáfora dá a forma de sistema a toda área em que aparece. Isso resulta na repressão de tudo similar a jogo, exterioridade ou alteridade. O sistema tende a ser monódico: ele só possui uma voz, a outra voz não se ouve. Há um monólogo interno gigantesco que ela organiza. A alteridade é excluída e não encontra outro lugar que o exterior. Naquele exterior, reduzido ao silêncio, não há outra voz sobre a matéria.
(Félibien considera a Arca de Noé como uma obra de arquitetura e sugere a estreita conexão entre esta arte e a religião. “Este povo”, escreve sobre o povo judeu, “tinha pela arquitetura um apreço especial, sem dúvida porque tal arte possui algum elemento divino, e não apenas porque Deus é chamado nas Escrituras de Arquiteto Soberano do Universo, mas também porque ele se propôs a ensinar a Noé como se deveria construir a Arca.”)4
O grande arquiteto é Deus, metaforicamente. Ou, para usar a ironia racionalista, o Ser Supremo. A começar pela atividade do arquiteto ao conceber seu trabalho como seu análogo, a ideologia sugere qual será a última palavra, a palavra da qual todo o significado depende. Mas o impacto da analogia não se limita à causa, ele é igualmente válido para o efeito. A imagem do próprio mundo é capturada pela analogia arquitetural. Mas essa analogia programa previamente a arquitetura sob uma perspectiva religiosa e teológica, impondo-lhe uma função cósmica. O mundo é legível somente se começamos pela cúpula do templo, e Deus é o grande arquiteto não apenas porque o templo que o arquiteto construiu celebra a obra divina. Tal metáfora só funciona a partir do compromisso do arquiteto com a economia da fé. Em outras palavras, é a fé que faz o arquiteto. O simbolismo cósmico não é autoevidente e a homologia entre o templo e o cosmos não é dada, mas uma condição, uma demanda a que o arquiteto deve atender. Mas é a fé que sustenta a semelhança.
Não esqueçamos que é o despedaçar da economia da mímese que define a função ideológica da arquitetura: ela não produz cópias, mas modelos. Ela produz a si mesma como modelo. Ela não imita uma ordem mas a constitui: quer seja a ordem do mundo, quer seja a da sociedade.
No Dictionnaire d’Architecture de Quatremère de Quincy, a autoprodução da arquitetura produz uma fuga similar para além da mímese. A estrutura da mímese é colocada em questão ali pela arquitetura “completa”, que não tem modelo existente para si em nenhum lugar e que, portanto, deve produzir ela mesma o que deve ser imitado. De fato, Quatremère diz: se a arquitetura principia pela imitação de si mesma, pela reprodução mecânica de suas próprias origens (assim como ainda o faz em meras construções – galpões, casas etc.); e se ela então imita o corpo humano, sem dúvida não como o faz a escultura (que só lida com formas exteriores), mas pelo estudo e baseando-se em seu conhecimento das proporções e da organização para criar a sua beleza, a qual reproduz suas relações em seus edifícios; em seu estágio mais completo, a arquitetura “imita” a própria natureza, ela “reproduz” o sistema harmônico de leis cósmicas:
Não é mais de molduras de madeira ou de cabanas que ela extrairá suas origens, nem do corpo humano, cujas proporções ela usará para regular suas relações; é a própria natureza, em sua essência abstrata, que ela toma por seu modelo. É a ordem da natureza par excellence que se torna seu arquétipo e seu espírito… É assim que tal arte, visivelmente mais dependente da matéria que as demais, se tornou nesse último aspecto mais ideal que elas – ou seja, mais adequada ao exercício do lado inteligente de nossa alma. De fato, a natureza sob seu exterior material fornece apenas analogias intelectuais e relações para a reprodução. Esta arte imita seu modelo menos em suas qualidades materiais que nas abstratas. Ela não o segue, mas o acompanha. Ela não faz as coisas que se veem, mas observa como elas são feitas. Ela não se interessa pelos resultados, mas pela causa que as produz.
Como emuladora da natureza, seus esforços se envidam no estudo dos meios da natureza e na reprodução de seus resultados numa escala menor. Assim, onde outras artes da delineação criaram modelos que elas imitam, a arquitetura deve criar-se a si mesma, sem poder se agarrar a nada da realidade.5
A arquitetura, assim, não possui modelo “criado”; mas deve criá-lo. Ela segue um arquétipo – que não existe independentemente dela mesma. Mais importante ainda, ela própria deve produzir este arquétipo, em que se garanta uma unidade de plano entre arquitetura e natureza. Ao se constituir como um microcosmo, a arquitetura delineia o mundo e projeta a sombra do grande arquiteto atrás de si. Sem arquitetura o mundo permaneceria ilegível. A natureza é o arquétipo da arquitetura somente na medida em que a arquitetura é o arquétipo da natureza. Embora a arquitetura seja cósmica, é mais que cosmo seja arquitetado.
(Taine na Philosophie de l’art define arquitetura como a produção de uma totalidade harmoniosa cujo exemplo não se encontra na natureza: “em toda arte deve haver uma totalidade composta de partes modificadas pelo artista de modo a manifestar algum caráter; mas não é necessário em todas as artes que a totalidade corresponda a objetos reais; basta que ela exista. Portanto, se é possível encontrar totalidades feitas de partes conexas não imitativas de objetos reais, haverá artes que não têm na imitação seu ponto de partida. Isso de fato acontece, e assim nascem a arquitetura e a música. De fato, além das conexões, proporções, derivações orgânicas e morais copiadas pelas três artes imitativas, há relações matemáticas resolvidas pelas outras duas que não imitam nada”.)6
Vitrúvio inicia seu livro (em muitos sentidos a bíblia da arquitetura) com a seguinte definição: “A ciência do arquiteto é ornada de muitas disciplinas e de vários saberes, estando a sua dinâmica presente em todas as obras oriundas das restantes artes”.7 A onisciência é a maior virtude do arquiteto. É a qualidade que lhe permite, quer seja “grande” ou de menor estatura, de acordo com Boullée: “fazer de si aquele que implementa a natureza”8 – aquilo que distingue sua arte da simples arte de construir, que diz respeito meramente à execução de um plano: ela precisa ser concebida previamente. A concepção como precondição implica o recurso a todos os ramos de conhecimento, de modo a julgar, por exemplo, a adequação das proporções matemáticas de um edifício a seu propósito, bem como seu entorno geográfico ou sua inserção na vida comunitária etc.. Todos os ramos do conhecimento convergem assim na arquitetura, que por essa razão ocupa um posto que pode ser definido muito exatamente como enciclopédico. Acresce que, se acreditamos em Perrault em sua edição de Vitruvius, esse seria o próprio sentido etimológico do termo: “Arquitetura é, de todas as ciências, aquela à qual os gregos deram um nome que significa superioridade e comando sobre as demais”.
A primazia da arquitetura é assegurada por sua função unificadora. Ela constitui a unidade das ciências, independente de seguirem uma inspiração teológica ou matemática: ela define a unidade como vocação necessária, locus de paz, Place de la Concorde.
(Alberti, em Della tranquilità dell’animo [1442], recomenda que, para aliviar a ansiedade e a dor, deve-se praticar a matemática ou o devaneio arquitetônico. “Ocasionalmente projetei e construí edifícios finamente proporcionados em minha mente, arranjando suas ordens e suas numerosas colunas com cornijas e painéis. E me ocupei das construções de tal sorte até ser subjugado pelo sono”.9 A arquitetura restaura a paz à alma.)
A arquitetura representa essa massa silenciosa, homóloga, gravitacional que absorve toda produção significativa. O monumento e a pirâmide são o que são para ocupar um lugar, para preencher um vazio: aquele deixado pela morte. A morte não deve aparecer, ela não pode ter lugar: que as tumbas a cubram e tomem seu lugar. A morte vem com o tempo como o fardo desconhecido do futuro. Ela é o outro de tudo o que é conhecido; ela ameaça o significado dos discursos. A morte é portanto irredutivelmente estranha a homologias; ela não é assimilável. O desejo da morte, cuja realização Freud reconhecia – sempre que um retorno ao inanimado fosse perceptível, sempre que a diferença fosse negada – veste a máscara dessa homologia em expansão que faz com que o lugar do Outro seja importado pelo Mesmo. Fingimo-nos de mortos para que a morte não venha, de modo que nada aconteça e que o tempo não tenha lugar.
Notas
- Holier, Denis. “Architectural metaphors”. In: ______. Against architecture: the writings of Georges Bataille. Trad. Betsy Wing. Cambridge; London: MIT. 1989. pp.31-36↩︎
- Hubert Damisch falava da “especificamente uma noção estrutural – diríamos hoje estruturalista – formada por Viollet-le-Duc sobre a relação entre a totalidade arquitetônica e seus elementos constituintes”. Se lêssemos o Dictionnaire de l’architecture française “prestando atenção à dialética entre a totalidade e suas partes e entre as partes e a totalidade, que é a alegada motivação desse dicionário ‘descritivo’, ele seria visto inevitavelmente como um manifesto, ou pelo menos o estranhamente precoce e definitivo esboço do método e ideologia do tipo de pensamento estrutural que é famoso hoje na linguística e na antropologia”. Introdução a: Damisch, Hubert (org.); Viollet-le-Duc, Eugène-Emmanuel. L’Architecture raisonnée: extraits du Dictionnaire de l’architecture française, réunis et présentés par Hubert Damisch. Paris: Hermann, 1964. p.14.↩︎
- Lacan, Jacques. “A la mémoire d’Ernest Jones: Sur sa théorie du symbolisme”. In: Écrits. Paris: Seuil, 1966. p.698.↩︎
- Félibien, André. La vie des architectes. Livre I.↩︎
- Quincy, M. Quatremère de. Encyclopédie méthodique: Architecture. Paris, 1788. T. I, p.120 [verbete Architecture].↩︎
- Taine, Hippolyte; Philosophie de l’art. I, I, VI.↩︎
- Vitruvius, (Marcus V. Pollio). Tratado de arquitetura. Trad. M. Justino Maciel. Todas as Artes. São Paulo: Martins Fontes, 2007. L.I, C.I, § 1.↩︎
- Boullée, Étienne Louis; Monclos, Pérouse de (ed.). Architecture: essai sur l’art. Paris: Hermann, 1968.↩︎
- Alberti, Leon Battista. Della tranquilità dell’animo. Apud: Borsi, Franco. Trad. Rudolf G. Carpanini. New York: Harper & Row, 1977.↩︎