Novo filme de Pedro Almodóvar tem sido chamado de misógino por apagar história das protagonistas

por Henrique Nunes
Na literatura, Nelson Rodrigues criou o pseudônimo Suzana Flag para forjar a trama de uma mulher que recusa o casamento forçado e assume para si mesma: “Meu Destino é Pecar”. Na música, Chico Buarque deu vida ao “eu lírico feminino”, pecha hoje praticamente proibida e que o compositor usou de maneira frequente em canções ao longo das últimas cinco décadas.
Revisitar algumas dessas obras, tanto de Nelson quanto de Chico, deixa claro o quanto muitas envelheceram mal e padecem hoje de uma releitura, digamos, sem concessões. Mas, ainda que problemáticas, poderiam servir de base para estudos e debates que evitariam, assim, caraterizações estereotipadas, machistas, misóginas, etc.
No cinema, pois bem, poucos cineastas se meteram a narrar histórias de mulheres como o espanhol Pedro Almodóvar. Sua filmografia é repleta de títulos que remetem a trajetórias femininas quase sempre com a carga melodramática que virou a sua marca registrada — e com plot twists, via de regra, tão originais quanto eloquentes.
A fórmula claramente perdeu força nos últimos anos. Ainda assim, a estética almodovariana mantinha intacto o prazer da audiência — com direito a cenas antológicas como a que seu amigo Caetano Veloso toca e canta com primor em Fale com Ela ou o beijo que transborda na lembrança de Antonio Banderas no seu longa anterior, Dor e Glória.
Passados dois anos, Almodóvar lança Madres Paralelas, sua primeira contribuição para a Netflix — que também disponibilizou todos os filmes anteriores do autor na plataforma. Ao contrário de Dor e Glória, cujo final dá uma aula de metalinguagem e nos deixa de queixo caído, seu filme mais recente é repleto de problemas.

O mais grave deles é atropelar histórias que nós, como espectadores, esperávamos por um desfecho à altura. Mas o buraco vai ainda mais fundo. Quando se propôs a contar as tais histórias das mulheres paralelas (não entrarei em detalhes do enredo, a esta altura, todos já devem saber do que se trata), ele faz escolhas bastante problemáticas quanto à representatividade.
Antes de tudo, não se preocupe, amiga leitora. Não ousarei tecer argumentações subjetivas ou teóricas sobre a suposta (ou evidente?) misoginia do autor. O que me pergunto é: como tratar de tal tema sem que o debate se torne mais uma vez um linchamento inquistório contra quem — aparentemente — está em defesa das mulheres que retrata no filme? Não tenho a resposta.
O fato é que, os três eixos que Almodóvar nos apresenta em Madres Paralelas e que renderiam arcos mais densos sobre a trajetória feminina, são abandonados para que ele conclua o filme com um lamentável panfleto anti-guerra — e em favor da memória de antepassados masculinos. Esse é justamente um dos pontos criticados em algumas resenhas. Sem entrar no mérito do “lugar de fala”, é evidente que a interrupção brusca de possíveis desdobramentos sugere, no mínimo, uma falta de cuidado em tratar de temas tão delicados.
No fim das contas, quando terminamos de ver Madres Paralelas, não sabemos muito bem sobre o que se trata — embora o filme queira nos dizer tantas coisas. Misógino ou não, Almodóvar não parecia muito encantado com as próprias mulheres que se dispôs retratar.