Lilly Wachowski: Matrix é uma alegoria de identidade transgênero

Comunistas revolucionários veem em Neo um Che Guevara, enquanto conservadores veem nele ninguém menos que Cristo, eis que as autoras trazem sua própria visão 21 anos depois

"Lembre-se, tudo que estou oferecendo é a verdade, nada mais." Imagem: reprodução
por Danilo Matoso

Numa reviravolta épica, a cineasta Lilly Wachowski divulgou na última quinta (6) em entrevista ao Netflix que o seu filme Matrix, de 1999, é sobretudo uma “alegoria da mudança de identidade transgênero”. Acrescentou ainda que a famosa cena da pílula vermelha / pílula azul é “não apenas a porta de entrada para ver o mundo como é e os sistemas construídos para determinar e controlar sua identidade, mas também uma metáfora esperta para terapia hormonal”.

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Com sua irmã, Lana, Lilly Wachowski assinou a trilogia Matrix ainda como Larry e Andy Wachowski – os irmãos Wachowski. Ambos assumiriam identidade de gênero feminino respectivamente em 2012 e 2016, passando a ser conhecidas como irmãs Wachowski. Matrix teria nas telonas as sequencias Matrix ReloadedMatrix Revolutions, bem como a animação Animatrix – todos em 2003. O híbrido de misticismo, política, ação e ficção científica cativaria as mais diversas audiências produzindo uma legião de seguidores fiéis comparáveis aos fãs das séries Guerra nas Estrelas ou Jornada nas Estrelas.

Além dos habituais produtos derivados de filmes de sucesso – como bonecos, roupas e fantasias –, a série motivaria polêmicas políticas, filosóficas e acadêmicas. Artigos, podcasts, canais no YouTube e livros até hoje reverberam os personagens, as imagens e questões do filme. No Brasil, por exemplo, o cientista social Humberto Matos produz o excelente canal Saia da Matrix, onde fala sobre economia, política e sociedade sob um ponto de vista marxista. O conhecido filósofo esloveno Slavoj Žižek, por outro lado, trataria do filme em artigos e a ele dedicaria uma parte de seu documentário The pervert’s guide to cinema, de 2006, em que elucubra:

A escolha entre a pílula azul e a pílula vermelha não é realmente uma escolha entre ilusão e realidade. É claro que a Matrix é uma máquina para ficções, mas essas são ficções que já estruturam nossa realidade. Se removemos de nossa realidade as ficções que a regulam, perdemos a própria realidade.

No filme, o programador Thomas A. Anderson (Keanu Reeves) trabalha também como hacker – sob o pseudônimo de Neo – entrando em contato com um personagem chamado Morpheus (Laurence Fishburne), que o convida a ou escolher entre tomar uma pílula azul e seguir sua vida, ou tomar uma pílula vermelha e entrar “no País das Maravilhas”, onde lhe mostraria “quão profunda pode ser a toca do coelho”. Neo toma a pílula vermelha e descobre que o mundo que conhecia era uma ilusão, um programa de computador chamado Matrix que inculca suas imagens numa humanidade que na realidade vive em casulos individuais.

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Trata-se evidentemente de uma alusão ao Mito da caverna de Platão, além da referência direta a Alice no País das Maravilhas, publicado em 1865 pelo matemático inglês Lewis Carroll. Outra interpretação bastante difundida é que a pílula – vermelha – seria a teoria marxista capaz de fazer ver, além da ideologia dominante, a realidade das estruturas econômicas que organizam o mundo – teoria corroborada pelo fato de que Neo e seu grupo empreenderiam ao longo da trilogia uma luta revolucionária contra o sistema.

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É possível que, para aqueles familiarizados com essas teorias, o filme tenha parecido apenas uma alegoria meia-boca filmada com excesso de efeitos especiais e uma boa dose de colagens em alta velocidade no melhor estilo MTV. Fato é, porém, que de fato grande parte do público tomou ele mesmo a “pílula vermelha” justamente ao ver o filme. Com tanto potencial simbólico e o amplo sucesso de público, é natural que cada grupo, cada fã, tenha projetado suas próprias crenças na obra. Comunistas revolucionários veem em Neo um Che Guevara, enquanto conservadores veem nele ninguém menos que Cristo. Nos mundos da academia, dos blogs, da conversa de boteco, muito já se masturbou em nome de Neo.

Eis que as autoras – por meio do Netflix, é bom lembrar – trazem sua própria visão 21 anos depois do filme original. Afinal elas mesmas têm também o direito de se projetarem em sua obra. Para elas, o filme é sobre transformação, sobre metamorfose – do mesmo modo que o trabalho humano se transforma em mercadoria, que se transforma em dinheiro, que se transforma em poder. Ponto para a leitura marxista – quer seja ela a das diretoras ou não.

É impossível, porém, diante do volume e da diversidade de interpretações que Matrix suscitou, não lembrarmos uma passagem clássica de Noivo neurótico, noiva nervosa, lançado em 1977 por Woody Allen. O diretor e protagonista – sempre interpretando a si mesmo – está agoniado por ser forçado a ouvir a baba de quiabo intelectualoide que um sujeito pernóstico despejava em sua acompanhante atrás dele numa fila de cinema, cheio de bossa, com um cigarro na mão, falando de Marshall McLuhan. Ele ouve os lamentos de Allen e vem tirar satisfação, jogando em sua cara que por acaso é professor de “TV, Mídia e Cultura” na incensada Columbia University. Allen não se intimida. Dá dois passos e tira ninguém menos que o próprio McLuhan de trás de um painel. O autor de Galáxia Gutemberg sentencia:

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Eu ouvi o que você dizia. Você não sabe nada de minha obra. Você quer dizer que toda minha falácia está “errada”. O que aqui é totalmente surpreendente é que você tenha chegado a lecionar em um curso de qualquer coisa.

Allen olha pra câmera e comenta: “Ah, se a vida fosse sempre assim”…

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