O projeto do “Ibirapuera Complex” faz jus à arquitetura neoliberal de uma forma insólita e surpreendentemente apropriada

por Danilo Matoso
Em sua campanha para a prefeitura de São Paulo, João Doria (PSDB) prometeu privatizar alguns dos 107 parques da cidade. Em fevereiro de 2017, lançou em Dubai um vídeo em inglês em que anunciava a investidores estrangeiros The biggest privatization program in its history [O maior programa de privatização na história (de São Paulo)]. Entre outras traduções duvidosas, a peça publicitária anunciava que a ação atingiria o Ibirapuera Park. Como de praxe em seu partido, Doria não esquentou a cadeira da Prefeitura nem por dois anos, tornando-se governador do Estado. O plano porém perseverou. Com o apoio de Bruno Covas (PSDB), o vice que assumiu o município em seu lugar, Doria lançou como iniciativa estadual no último mês o Ibirapuera Complex: um projeto de demolição de significativa parte do Conjunto Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, incluindo o Estádio Ícaro de Castro Mello e o Conjunto Aquático Caio Pompeu de Toledo, que dariam lugar a estacionamentos, um hotel e um shopping. Aparentemente, o ginásio Geraldo José de Almeida – conhecido pelo nome do parque – não será demolido.
A manobra política que permite a privatização dos parques passou – como de praxe desde o golpe de 2016 – pela anulação da participação popular no processo decisório. Uma lei municipal de maio de 2018 esvaziou os conselhos gestores dos parques, tirando seu poder deliberativo. Em dezembro do ano passado, a prefeitura assinou a concessão por 35 anos de cinco parques da capital paulista à empresa Construcap CCPS Engenharia e Comércio – com o nome de Urbia Gestão de Parques –, com a outorga fixa de R$ 70,5 milhões. Além do Ibirapuera, foram privatizados os parques Tenente Brigadeiro Faria Lima (Vila Maria), Jacintho Alberto e Jardim Felicidade (Pirituba), Eucaliptos (Campo Limpo) e Lajeado (Lajeado).
Reação popular
A população da cidade, naturalmente, não vê com bons olhos tais medidas. Em 18 de novembro, o corpo de professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) publicou uma carta aberta em defesa do Ginásio e do Conjunto Desportivo à sua volta, alertando que “o projeto, tal como estruturado, representa séria ameaça à integridade física e ao funcionamento de um equipamento esportivo que, além de ser muito utilizado na formação de atletas no Brasil, é constitutivo da história da cidade de São paulo e realização fundamental da arquitetura brasileira”. A partir daquele manifesto, mais de 65 mil pessoas já subscreveram um abaixo-assinado pela preservação do Ginásio do Ibirapuera, divulgado nas redes sociais com a hashtag #sosginasioibirapuera.
O protesto tempestivo dos professores perdeu, porém, uma batalha. Os docentes haviam sido excluídos da composição do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), que rejeitou o tombamento do ginásio, deixando a porta aberta para sua descaracterização ou demolição. O cronista esportivo Juca Kfouri lembrou oportunamente que hoje a área fica numa das regiões mais valorizadas em São Paulo, “tão valorizada que o governo estadual paulista e a prefeitura paulistana deixaram sucatear para vender a preço de banana e prometer maravilhas à população, embora o resultado final seja sempre benéfico aos compradores e aos fundos de campanhas eleitorais”.
Além de arquitetos e cronistas, a própria comunidade de esportistas – principal atingida pela mudança de uso – também está mobilizada. No último domingo (6), centenas de ex-atletas olímpicos realizaram um abraço simbólico ao ginásio do Ibirapuera contra a privatização, organizada pelas redes sociais por um grupo chamado Esporte pela Democracia, com a hashtag #abraceoibirapuera. Desnecessário relembrar o caráter social do esporte como elemento de agregação e organização popular. Em torno à prática esportiva, estruturam-se movimentos de bairro, da juventude, da educação, da cultura. Os estádios, ginásios e arenas são pólos de movimentos de massa com clara consequência política, como o demonstraram as torcidas antifascistas que se levantaram nas ruas em meados deste ano, mandando a extrema-direita de volta para casa.
Esporte, cultura, política
Talvez um dos muitos ícones dessa fusão entre esporte, desenvolvimento e cultura seja justamente o arquiteto Ícaro de Castro Mello (1913-1986), que hoje dá nome ao estádio olímpico (originalmente um velódromo) de sua autoria que será demolido. Ele foi recordista sul-americano de salto em altura e compôs a equipe olímpica nacional em 1936. Foi um dos principais artífices da criação e do fortalecimento das políticas profissionais de arquitetura e urbanismo, tendo estado à frente de várias entidades da categoria, com ativa participação política. Especializou-se em arquitetura esportiva, projetando diversas instalações dessa natureza Brasil afora. De sua prancheta saíram, por exemplo, o premiado Ginásio de Sorocaba (1950), o Ginásio de Bauru (1955) e o Ginásio Nilson Nelson (1970) em Brasília. Sua obra mais conhecida talvez seja o Ginásio do Ibirapuera, projetado no início da década de 1950, por ocasião das comemorações do IV Centenário de São Paulo que deram origem ao parque como um todo – incluindo o paisagismo não executado de Roberto Burle Marx e os edifícios de exposições de Oscar Niemeyer articulados por sua emblemática marquise.
Na última sexta (4), o Governo do Estado divulgou um vídeo promocional que incluía perspectivas em 3D de um novo Ibirapuera Complex. Ainda não se sabe se este é o nome de uma nova patologia psiquiátrica relacionada à privatização de espaços públicos durante a pandemia ou o nome do empreendimento propriamente dito. Para alívio geral, o Ginásio propriamente dito está, aparentemente, mantido. O Conjunto Aquático e o Estádio, porém, virão abaixo para dar lugar a um hotel, uma garagem e um shopping center. Não se tem notícia da autoria do projeto, mas sabe-se que sua escolha passou longe de processos democráticos como os concursos públicos de projetos. O aspecto geral é bastante contemporâneo e compatível com o das últimas obras da arquiteta Zaha Hadid, conduzidas após sua morte pelo seu frontman paramétrico, o alemão Patrik Schumacher. Até aqui, porém, o desenho não fez boa figura. Imediatamente após sua divulgação, foi notada nas redes sociais sua semelhança com modernos vasos sanitários. Nos espaços públicos de São Paulo, o ícone da privatização já ganhou o apelido popular de “privadão”…