O verme floresceu em sua consciência, a machada é o símbolo perfeito do abismo, ao tingir o chão de sangue, caminha para a sua própria destruição

por Emílio Pio
Crime e castigo é uma das obras mais importantes do nosso tempo, um livro que fala da essência humana. Fiódor Dostoiévski ultrapassa camadas de pele em busca ali das entranhas, das marcas do espírito. O jovem intelectual Raskólnikov é um personagem denso, que vive entre os livros e a miséria, entre a lâmina e a escrita, carrega em si um desprezo imenso por tudo que lhe cerca, e se choca a cada segundo com o absurdo – a realidade. Encontramos sua consciciência chafurdada no lodo.
“Raskólhnikov desceu pelas escadas. Até então nunca entrara numa taberna; mas agora tinha a cabeça fora do lugar e, além disso, afligia-o uma sede que o fazia tossir. Apetecia-lhe beber aguardente fresca, tanto mais que se sentia esgotado pela sua fraqueza súbita e, enfim, cheio de fome. Sentou-se num canto escuro e sujo, junto de uma mesinha de madeira de tília; pediu aguardente e bebeu com avidez o primeiro copo. Sentiu-se imediatamente aliviado e os pensamentos tornaram-se-lhe mais claros: ‘Tudo isto é um absurdo’, disse, devaneando, ‘e não devo preocupar-me. É uma simples indisposição física! Um golinho de aguardente, um torrãozinho de açúcar… e o ânimo outra vez volta, as idéias se aclaram e as intenções se afirmam. Oh, como tudo isto é opressivo!'”
O ar sombrio suplementado pelo cal branco, o ar estático, são marcas de São Petersburgo da época, o cheiro de óleo das tabernas. O diálogo com o bêbado que futuramente lhe conduz a uma ocasião e ao abismo. Raskólnikov tem lampejos marcantes em que se compara com grandes figuras como Napoleão, lampejos de glória, mas o contato com o real lhe esgota, os problemas, a fome, a sua realidade, a sua condição.
Ele está diante do absurdo e do desejo, de um sublime desejo de vontade de potência, mas também diante dos abismos e escombros. A sua consciência é um escombro, fragmentada, ela caminha para a destruição. Assim como um escorpião e o seu ímpeto, que carrega acima da cabeça o veneno e a cura, instintivamente seduzido.
“Lembro-me também de que eu, no meu artigo, desenvolvia a idéia de que todos… digamos, por exemplo, os legisladores e os fundadores da humanidade, começando pelos mais antigos e continuando por Licurgo, Sólon, Maomé, Napoleão etc. etc., todos, desde o primeiro até o último, tinham sido criminosos, mais não fosse senão porque, ao promulgarem leis novas, aboliam as antigas, tidas por sagradas pela sociedade e pelos antepassados, e certamente que não se teriam detido perante o sangue, sempre que isso (derramado às vezes com toda a inocência e virtude, em defesa das velhas leis) pudesse ser-lhes útil. Também é significativo que a maior parte desses benfeitores e fundadores da humanidade fossem uns sanguinários, especialmente ferozes. Em resumo: eu concluía daqui que todos os indivíduos, não só os grandes, como também aqueles que se afastassem um pouco da vulgaridade, isto é, também aqueles que são capazes de dizer qualquer coisa de novo, teriam a obrigação, pela sua própria natureza, de serem infalivelmente criminosos…”
O verme floresceu em sua consciência, a machada é o símbolo perfeito do abismo, ao tingir o chão de sangue, ele abre um novo caminho, caminha para a sua própria destruição.
Onde não há dúvida, o verme floresce.
“Meu Deus! – exclamou. – E se … e se eu pego de fato na machada, abro-lhe a cabeça e faço saltar os miolos… escorregarei no sangue quente e viscoso; quebrarei a fechadura, roubarei e pôr-me-ei a tremer, esconder-me-ei, todo manchado de sangue… com a machada… Meu Deus, será possível…?”
Ali nos subterrâneos, nas grades, Raskólnikov tinha o solo perfeito da possibilidade, percebe a realidade e se reconhece, encontra definitivamente a sua verdadeira condição, de um ser que vive no lodo, perde seu brilho e lampejo napoleônico, e está em condições, ele pode sim amar uma mulher humilde que lhe oferece amor.
A obra é um retrato do século. A literatura de Dostoiévski é uma paisagem do âmago dos seres, a morada do verme.
“Tinha o Evangelho debaixo da almofada. Pegou-o maquinalmente. Aquele livro era dela, pois era o mesmo em que ela lera a passagem da Ressurreição de Lázaro. Nos primeiros tempos do presídio pensava que ela havia de importuná-lo com a religião e que se poria a falar do Evangelho e a aborrecê-lo com o livreco. Mas, com o maior assombro da sua parte, nem uma só vez ela lhe falou nisso, nem uma vez sequer lhe tinha proposto o Evangelho. Fora ele quem lho pedira, um pouco antes de ter adoecido, e ela levou-lho em silêncio. Até então ele nem sequer o abrira. Agora também não o abriu, mas ocorreu-lhe um pensamento: ‘Poderia, por agora, a sua crença, não ser a minha também? Pelo menos os seus sentimentos, as suas aspirações…’ Ela esteve também comovida todo aquele dia e, à noite, voltou a ficar doente. Mas era feliz a tal ponto que quase a assustava a sua felicidade. Sete anos, só sete anos! No princípio da sua felicidade, houve alguns momentos em que tinham estado dispostos a considerar aqueles sete anos como sete dias. Ele nem sequer sabia que a vida nova não lhe seria dada gratuitamente, mas que ainda teria de comprá-la caro, pagar por ela uma grande façanha futura… Mas aqui começa já uma nova história, a história da gradual renovação de um homem, a história do seu trânsito progressivo dum mundo para outro, do seu contato com outra realidade nova, completamente ignorada até ali. Isto poderia constituir o tema duma nova narrativa… mas a nossa presente narrativa termina aqui.”