Mesmo com casa, comida, saúde, escola e o pleno emprego garantindo a vida, a juventude da União Soviética também queria diversão, arte e zoar um pouco

por Alexandre Flach
O texto abaixo é a oitava parte da série Fogo e revolta nas ruas: para onde vai a luta popular?
Para quem ainda pensa que a União Soviética era apenas um bloco monolítico e careta, gente cinza vivendo dentro do livro “1984”, entre o trabalho compulsório e a doutrinação totalizante do “Grande Irmão”, não… mais uma vez errou de país. Na União Soviética teve punks, hippies, rock, orientações sexuais diversas, maconha liberada…. além de bebida, muita bebida.
Bem, seguindo a série “Fogo e revolta nas ruas: para onde vai a luta popular?”, agora, chegou a hora de pegar uma caroninha na ótima série “Grito de ódio: uma breve história do punk”, do companheiro Partisano, especialista em punk-rock, Ivan Conterno. Vamos dar uma olhada na contracultura soviética, nas lutas dos gays e outras coisinhas mais. Seja bem-vindo ao terceiro episódio dessa “subsérie” sobre a União Soviética!
Hippies e punks soviéticos
No país da mentalidade bolchevique, e sua característica alergia a facções, onde o partido único através de uma pesada cortina burocrática planejava desde a economia até a construção do novo “homem soviético”, não era imprevisível que latejasse no povo um grito por ar fresco e liberdade. Não foi uma grande explosão, mas a rebeldia necessária para a sobrevivência humana acabou encontrando voz na garganta de muitos jovens soviéticos.
Se o sonho americano era denunciado por hippies, punks, beatniks no mundo capitalista, o “sonho soviético”, da eterna transição ao mundo comunista, foi sendo cada vez mais denunciado como uma enrolação pelos jovens soviéticos, assim como o entreguismo final deste mesmo sonho nas mãos do imperialismo ocidental.
O povo estava de saco cheio daquela história de ficar para sempre com armas, foices e martelos nas mãos, empenhados na construção da sociedade “do amanhã”. No mundo “de hoje”, mesmo com casa, comida, saúde, escola e o pleno emprego garantindo a vida, a juventude da União Soviética também queria diversão, arte e zoar um pouco.
Começou com os stiliágui. Sem nenhuma preocupação política, era mais um pessoal que estava a fim de se divertir de um jeito um pouco diferente, dançando “swing” e “boogie-woogie”, num visual mais inglês.

Os hippies chegaram um pouco depois. Sem ter ácido à disposição e não sendo exatamente “alternativa” a ideia de viver em comunidades no país dos soviets, os hippies ficavam meio sem assunto na União Soviética. Até para ter aquele visual flower power hippie, tinha mesmo que ser filhinho de papai — da “elite” russa, a burocracia, a “nomenklatura” — e assim conseguir ter acesso a roupas floridinhas para homens.
Mas teve hippie, rock, sexo livre, festa à vontade e maconha liberada na União Soviética? Com certeza! Era mais fácil fumar um na URSS do que no Brasil ou nos EUA na mesma época. A maconha e o haxixe passaram por baixo do radar da polícia soviética. Eles achavam que se tratava apenas de um “cigarro de cheiro estranho” como conta o diretor de cinema Terje Toomistu, no site Russia Beyond, que por sinal, fez um documentário interessante sobre o assunto: Soviet Hippies.
Já os punks estavam mais em casa na nação operária. Apesar da imensa diversidade da cultura punk, as características mais marcantes dos punks tinham muita afinidade com o verdadeiro sonho soviético “raiz”: eram operários, antifascistas violentos e bastante conscientes da luta de classes, da exploração e de toda essa merda que é o capitalismo.
Então tinha banda punk soviética que só queria “cuspir” e foda-se, como a Avtomaticheskye Udovletvoritely e sua “Plevat”, como também tinha banda engajada em denunciar o abismo entre a velha e acomodada União Soviética da era Brejnev e aquela jovem república dos soviets de 1917, parida pela rebelião popular. Este era o caso da lendária “Grazhdanskaya Oborona” (Defesa Civil), ou simplesmente GROB:
“A chave para nossas fronteiras foi quebrada em duas
E Nosso Pai Lenin definhou –
Ele se decompôs em mofo e mel silvestre.
(…)
Bem, quando chegarmos ao comunismo, tudo ficará ótimo.
Em breve, só temos que esperar.
Tudo será gratuito lá, tudo será superior.
Provavelmente nem teremos que morrer.
Acordei no meio da noite e percebi que tudo estava indo de acordo com o planejado.”
Nem é necessário lembrar que hippies e punks não estavam “de acordo com o planejado” pelo sisudo regime soviético de então. Muitos jovens foram mandados para reuniões “preventivas” da juventude do Partido Comunista, o Komsomol, ou para umas férias em um hospital psiquiátrico.
Gays na URSS começaram bem, mas aí veio o camarada Stálin…
Na questão da diversidade sexual, no início os bolcheviques foram um verdadeiro exemplo para o mundo. Assim que tomaram o poder, a homossexualidade masculina deixou de ser crime (sexo entre mulheres sempre foi de boa):
“A legislação soviética não vê diferença entre a homossexualidade e a chamada relação íntima ‘natural’. Todas as formas de relações sexuais são tratadas como uma questão pessoal. O processo criminal só é implementado em casos de violência, abuso ou violação dos interesses alheios”. (“A Revolução Sexual Na Rússia”, artigo de 1923 do médico Grigóri Batkis, professor do Instituto de Higiene Social da Universidade de Moscou)
Mas então veio Stálin e mudou “um pouquinho” as coisas… pra pior. Bem pior!

No auge da paranoia stalinista que via conspirações acontecendo até na própria sombra, um chefe da NKVD (polícia secreta stalinista) caiu na bênção do capeta de mandar uma carta para Stálin, em que antecipava-se ao olavismo e dizia: “espiões homossexuais estão estabelecendo uma rede de salões, grupos e outras organizações de pederastas, transformando-os em células espiãs”.
Pronto, foi suficiente para o bigodudo por a mão onde não devia (no caso, no cu dos outros) e mandar acrescentar no código penal soviético o artigo 121, que determinava cinco anos de prisão para gays. Não contente, ainda mandou brasa na propaganda oficial que dizia que homossexualidade era coisa de fascista, pois, “na Alemanha, a homossexualidade é legal” (até Hitler também colocar o dedo nisso daí também, é claro).
Com a morte do georgiano, a situação infelizmente não se alterou e o resultado foi algo em torno de 26 mil presos pelo crime de gostarem de transar com homens.
“As condições de vida eram um horror. Onde podíamos ir? Todos moravam com os pais. A gente não podia alugar um apartamento ou ir a um hotel, isto acontecia apenas com pessoas em viagens de trabalho.”
E depois de muitas artimanhas para se esconder, correndo sempre o risco de encontrar um “remontniki” (consertador) pela frente — que atraía homossexuais para encontros, para os espancar ou chantagear — ou até mesmo serem julgados por “atividade contrarrevolucionária”, somente em 1993, depois do fim da URSS, o infame artigo 121 foi abolido.
Bebuns soviéticos: criativos, destemidos e obstinados
Enquanto a democracia dos EUA impunham e lei seca, por trás da terrível “cortina de ferro” o levantamento de garrafa de vodca era o esporte universal, cada dia mais praticado e popular na União Soviética. Em 1984, conforme relata Aleksandr Nemtsov, “cada homem bebia cerca de 180 garrafas de vodca por ano, ou cerca de uma garrafa a cada dois dias”. Dá pra acompanhar os russos, camarada?
Acusado por muitos de ter destruído a União Soviética, o companheiro Gorbatchov também tentou mexer com a paixão nacional por ficar bêbado: lançou uma campanha anti-álcool, reduzindo a produção e aumentando o preço dos destilados. Defendia a tal ponto a sobriedade que acabou sendo surpreendido pelo ébrio contumaz Boris Iéltsin, que, além de o destituir, destruiu a nação dos soviets no processo… Com bebida não se brinca!
Mas a resiliência do povo soviético nunca se mostrou tão aguerrida. Os mais bravos lutadores e bêbados menos afortunados pelo destino, ao invés de se renderem às delícias da sobriedade, “se tornaram mestres em química e, de alguma forma, conseguiam criar destilados de fluido de freio do carro, cola BF, graxa, pasta de dente em pó etc.”, conforme narra o dissidente soviético Vladímir Bukovski, em suas memórias “To Build a Castle”.
“Se ao “trabalhar” com cola BF esses “mestres em química” tinham que separar o destilado da substância adesiva (resina), então eles derramavam o “BF” (conhecido no país também como “Boris Fedorovitch”) em uma tigela, e então colocavam uma broca com um palito de madeira sobre ela e acendiam lentamente o mecanismo.
A ideia era que a resina mais densa seria deixada no palito, deixando o destilado na tigela. Sacou? Consequências inevitáveis, não é surpresa que esses bebuns detonavam gravemente a própria saúde.” (Russia Beyond)
Muita gente ficava cega nesta brincadeira, e a pancreatite mandava pra beira do caixão, mas o que seria da vida sem um pouco de aventura, não é mesmo?
Semana que vem tem mais.