Reações à obra explicitam o projeto de destruição da cultura que a direita manifestou diversas vezes no passado, como na exposição de arte “degenerada” dos nazistas

por Danilo Matoso
Às vésperas da passagem de ano, no último dia 30, a artista plástica pernambucana Juliana Notari publicou em suas redes sociais fotos de sua última obra, executada em 11 meses na Usina de Arte em Água Preta, Pernambuco. Intitulada “Diva”, a Land Art é – nas palavras da artista – “uma enorme escavação em formato de vulva/ferida medindo 33 metros de altura por 16 metros de largura e 6 metros de profundidade, recoberta por concreto armado e resina”. Embora a publicação fosse uma congratulação informal com os envolvidos em sua realização, ela despertou a fúria de grupos conservadores que infestaram-na com nada menos que 27 mil comentários até aqui – a maioria bastante agressiva.
Uma perspectiva feminina
Graduada em artes plásticas em 2003 pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Juliana Notari, 45, já vinha trabalhando numa performance chamada “Dra. Diva” em que faz rachadura numa parede e a atravessa com sangue de boi e um espéculo – um instrumento ginecológico. O espaço Usina de Arte – criado no interior de Pernambuco como um parque artístico-botânico análogo ao de Inhotim (MG) – convidou-a para realizar a obra, e a inserção na paisagem foi a forma escolhida para fixá-la ao local. É uma das “Residências Artísticas e Literárias” em que artistas convidados para uma temporada deixam suas impressões e criam obras para a Usina. O programa atualmente conta com mais de uma dezena de artistas como Carlos Mélo, Daniel Acosta ou Laís Myrrha.
Segundo matéria no portal Universa, Notari “já fez performances em que passou sangue da própria menstruação em uma árvore na Amazônia, foi arrastada por um búfalo na Ilha de Marajó (PA) e depois comeu os testículos crus do animal”. Em seu site, a multiversada artista apresenta trabalhos de performance, videoperformance, instalações, videoinstalações, vídeos, fotografias, objetos, textos, quadros e desenhos. Além disso, vem desenvolvendo doutorado em Artes Visuais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Na postagem que gerou a polêmica, Juliana explica a obra:
Em “Diva”, utilizo a arte para dialogar com questões que remetem à problematização de gênero a partir de uma perspectiva feminina aliada a uma cosmovisão que questiona a relação entre natureza e cultura na nossa sociedade ocidental falocêntrica e antropocêntrica. Atualmente essas questões têm se tornado cada vez mais urgentes. Afinal, será através da mudança de perspectiva da nossa relação entre humanos e entre humano e não humano que permitirá que vivamos mais tempo nesse planeta e numa sociedade menos desigual e catastrófica.
Milhares de conservadores de todo o mundo vêm agredindo a artista das mais diversas maneiras e em vários idiomas – incluindo espanhol, inglês, alemão e russo. Em geral, tentam desmerecer a obra por ser uma vulva, por ser supostamente antiecológica – já que está numa colina –, por não corresponder ao que consideram arte, enfim. Selecionar, aqui, um comentário seria uma injustiça com a burrice dos demais. Basta acessar a postagem e ler os últimos para se ter uma ideia do que passa por lá. O caso foi parar em jornalões como Folha, O Globo, o inglês The Guardian, ou a revista alemã Der Spiegel. O “Comprova” – site de checagem do Estadão – divulgou uma nota desmentindo – em mau português: “É falso que a escultura ‘Diva’ foi feita com dinheiro público e patrocínio do Sebrae” – como se houvesse algum problema se o fosse.
Tal agressão gratuita à obra de Notari evidenciou que muitos em nossa sociedade se sentem à vontade para agredir mulheres ou qualquer coisa relacionada à temática feminina que fuja ao que imaginam que as mulheres devam ser. É parte da mesma mentalidade que resulta na violência doméstica, no estupro e nos milhares de feminicídios em nossa sociedade. Como a própria Notari diz, a obra “despertou o pavor primitivo da vulva” e “mexeu em questões que precisam ser mexidas”. Convém lembrar que os ataques à arte, à mulher, à população negra ou aos LGTBQ+ são parte central de um projeto cultural em curso há tempos que agora volta a recrudescer.
É estranho que isso ainda seja estranho?
Há mais de um século, em 1917, o artista francês Marcel Duchamp propôs – com o pseudônimo de Richard Mutt – apresentar um mictório virado de lado na exposição da Sociedade dos Artistas Independentes no Grand Central Palace em Nova York. O libelo antiarte foi recusado, mas foi fotografado e publicado, tornando-se ele próprio um novo paradigma de arte. Desde então, a arte contemporânea se desenvolveu numa miríade de incontáveis manifestações e formas – muitas delas questionando o próprio lugar social da arte ou fazendo uso complementar da própria cobertura da imprensa como parte dela. São estratégias comuns. O que causa espanto, à primeira vista, é que após tanto tempo as expressões da arte contemporânea ainda provoquem reações de escândalo. Como não poderia deixar de ser, essa reação tem um determinado fundo político.
Durante o regime nazista, os artistas modernos foram classificados de “degenerados” pelo ministro da Propaganda Joseph Goebbels, que proibiu sua exposição em território alemão e perseguiu seu autores. Artistas como Paul Klee, Pablo Picasso, Piet Mondrian, Giorgio de Chirico, Marc Chagall ou Lasar Segall foram proscritos a partir de decretos “Contra a cultura negra, a favor do nacionalismo alemão”, por exemplo. A ideia, bem contada no documentário Arquitetura da destruição (Peter Cohen, 1992), era construir uma arte nacional alemã que fundisse as raízes clássicas dos grandes impérios romanos a elementos da cultura camponesa romântica germânica. Tudo o que fosse diferente dessa visão de identidade nacional deveria ser atacado e destruído – como de resto tudo o que fosse judeu, socialista ou comunista.
Com a nova ascensão do nazismo na última década, tais práticas voltaram à tona – e cada vez mais legitimadas após o golpe de 2016. Um marco nessa escalada foram os ataques do coletivo fascista Movimento Brasil Livre (MBL) à exposição Queermuseu em 2017 – resultando na suspensão da mostra pelo Santander Cultural em Porto Alegre, que a abrigava. No mesmo ano, o prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella (PRB) vetou a mesma exposição no Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR).
Um projeto ainda vivo de censura
Após a chegada de Bolsonaro ao poder, o projeto nazista de cultura ganhou contornos institucionais cada vez mais palpáveis. O Ministério da Cultura foi extinto e transformado em Secretaria do Ministério do Turismo. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) vem sendo destruído com um corte brutal de verbas e a nomeação de pessoal não qualificado para seus cargos-chave. A chamada “ala ideológica” do governo, comandada por Olavo de Carvalho, chegou ao poder sedenta por um plano de “depuração cultural” análogo ao de Hitler. Sua expressão mais clara talvez tenham sido os sucessivos pronunciamentos públicos o então secretário de Cultura, Ricardo Alvim.
Nas Nações Unidas, Alvim disse em novembro de 2019 que, com a eleição de Bolsonaro, “os valores ancestrais de elegância, beleza, transcendência e complexidade encontraram uma nova atmosfera”. “E isso nos permitir retomar o sonho de libertar a cultura e colocá-la na direção de princípios poéticos sagrados”. O viés nazista que todos já haviam percebido se escancarou em janeiro de 2020, quando o secretário declarou num vídeo institucional bizarro que “a arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional, será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional, e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo – ou então não será nada”. Era, ali, uma citação textual de Goebbels. Pegou mal e Alvim foi demitido.
Isso não significa, porém, que esses grupos tenham arrefecido em seu projeto de achatamento e censura da cultura em geral e da arte em particular. Essa é a agenda de todo projeto de poder autoritário, afinal. O ataque de milhares de conservadores de todo o mundo à Diva de Juliana Notari é sinal de que a ideologia que legitima tal plano continua bastante vigente. O próprio Olavo de Carvalho não se furtou a uma tentativa infantil de ironizar a obra, ao mesmo tempo em que fez um chamado: “por que estão falando mal da buceta de 33 metros em vez de enfrentá-la com um pirocão?”. Até aqui a inépcia e a incapacidade política e organizativa da direita no poder ainda não tornaram possível a implementação de um novo sistema de censura e “higienismo” cultural. Mas eles continuam tentando.
Meu comentário é: sem comentários. End of times.