Copo Americano, Soviético ou Lagoinha: caminhos de um desenho

O Copo Americano de fuste canelado tem origens antigas. Porém, em sua forma atual, desenvolvidas no pós-guerra, é mais soviético e brasileiro

Imagem: Vectoria
por Danilo Matoso

Quatro amigos se sentam à mesa do bar. Pedem uma cerveja e quatro copos. É o fim de uma tarde quente. Enquanto conversam, aos gritos num local barulhento, ouvem os estampidos dos copos sobre a mesa, colocados com firmeza e agilidade pelo garçom apressado. A garrafa está gelada como deve, com aquela geada branca gelado. A mão do garçom é rápida: estala a tampa que chia. A conversa se interrompe. Há um ritual ali. A cerveja gelada é distribuída nos quatro copos. Um brinde, dois goles, um momento de suspensão da realidade enquanto ela desce pelas goelas secas. A vida é boa. Vai ficar tudo bem. Outra garrafa? Claro.

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Esse ritual – hoje só na memória em tempos de pandemia – tem um sabor especial se feito com os tradicionais Copos Americanos – ou Lagoinha –, que com seus 190ml permitem essa distribuição fraternal. Seu desenho é excelente por vários motivos. Sua forma em tronco de cone reduz o contato com a mesa – reduzindo o ganho de calor. Seu tamanho reduzido provê a quantidade certa de cerveja que se pode beber sem que ela esquente enquanto a garrafa mantém o restante gelado. As 14 caneluras que o circundam dão rigidez à forma e o tornam menos suscetível a quebras, ao mesmo tempo em que tornam a empunhadura mais firme, evitando escorregões inconvenientes. Sua gola lisa de 17mm parece separar naturalmente o líquido da espuma. Com 93mm de altura, 67mm de diâmetro na boca e 46mm na base, e 100g de peso, esse pequeno copo é fabricado há mais de 70 anos no Brasil, mas possui uma história ancestral, uma origem controversa e um nome polêmico.

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Copo americano padrão. Imagem: Danilo Matoso

Bonito por natureza

Há na coleção do Museu Britânico um copo canelado dourado de 15cm de altura, junto a uma xícara similar que, dizem os pesquisadores, serviam provavelmente para beber cerveja. São peças de mais de 4.600 anos, encontradas na tumba da Rainha Puabi, na antiga cidade de Ur, na Mesopotâmia – atual Iraque.

Copo encontrado na tumba da Rainha Puabi, UR, Mesopotâmia, c.2.600 a.C. Imagem: British Museum

Essa forma canelada também apareceria nos fustes fasciculados – divididos em “caules” – e capitéis das chamadas colunas palmiformes e lotiformes na arquitetura egípcia antiga. Como é de se imaginar, a referência daqueles artífices era a vegetação da região. Alexander Speltz – um arquiteto alemão que viveu no Brasil há pouco mais de um século – afirma em seu clássico “Estilos de Ornamentos” (1904) que “as flores de lótus e de papirus eram as mais usadas pelos antigos egípcios na ornamentação de qualquer trabalho, desde as mais colossais colunas até os menores objetos” – e certamente de copos de cerveja, alimento essencial à época.

Colunas egípcias segundo A. D. F. Hamlin: a. cilíndricas, b. fasciculadas, c. poligonais, d. base.

A relação com elementos vegetais não é meramente alegórica. Bebia-se em pequenas canas cortadas de bambus e taquaras. Na Espanha, até hoje um pequeno copo para cerveja fino na base e largo na borda é a caña, embora sair para chapar o melão ainda se diga “salir de copas.” E aí chegamos no nome que damos ao pequeno artefato: copo, que vem de copa – cupam para os romanos, que por sua vez chamavam copo de poculum ou calix, o nosso cálice. É o cálice que consta no evangelho segundo Matheus, ao menos em dois momentos importantes da vida de Cristo. A comunhão e a morte.

Na Santa Ceia, Jesus “tomou o cálice, deu graças e o ofereceu aos discípulos, dizendo: bebam dele todos vocês.” O copo, o cálice – e não a copa, ou taça usadas tradicionalmente – é o instrumento de comunhão original da tradição cristã. Para desespero dos cristãos abstêmios, uma das últimas coisas que Jesus fez antes de ser preso e morto foi sentar pra beber vinho com os amigos. É um ato literalmente sacramentado pela Igreja Católica como Eucaristia. Na alegoria atualmente vigente, porém, o padre empunha uma luxuosa taça banhada de prata e ouro, mostra o vinho pra todos e não o divide com ninguém. Depois reclamam da perda do rebanho. Mais tarde, sabendo que a morte se aproximava, voltou-se e pediu – lembrando-se do objeto mais corrente: “meu pai, se for possível, afasta de mim este cálice,” mas logo se conformou e abraçou sua Paixão de vinho tinto de sangue, como diz Chico. Como se vê, se o copo é feito à imagem e semelhança das colunas do templo Egípcio, também os pilares da religião ocidental estão nele representados.

Da manufatura ao Copo Soviético

Na tradição manufatureira e industrial recente, o caminho desse pequeno copo canelado de vidro é tortuoso. Consta no eBay um “copo raro de cristal veneziano dourado canelado do século 18 circa 1770” – embora os motivos representados sejam evidentemente orientais. Segundo o estadunidense Guide to dating glass tableware: 1800 to 1940 [Guia para datar utensílios de mesa em vidro: 1800 a 1840], “copos canelados foram introduzidos em meados e final da década de 1830,” sendo manufaturados regularmente a partir de então. Talvez essa relação com objetos cotidianos estivesse presente no imaginário de Alexander Samuelson, Earl Dean, C. J. e William Root – a serviço da Root Glass Company, de Indiana – quando conceberam a garrafa canelada curva da Coca-Cola para um concurso promovido em 1915. Prevaleceu na narrativa, em todo caso, o ancestral recurso à natureza. A garrafa-ícone do design capitalista teria sido inspirada no fruto do cacau.

Garrafa da Coca-Cola patenteada por Alexander Samuelson em 1916.

A história de nossos copos porém não tem muito de capitalista. Ao contrário. Trinta anos depois, durante a Segunda Guerra, a escultora Vera Murkhina (1889-1953) projetaria no Ateliê de Vidro Artístico de Leningrado o granyonyi stakan [copo lapidado, canelado ou facetado] que, fabricado em Gus Khrustalny, se tornaria um ícone do design daquele país por décadas. De perfil cônico, com caneluras até a base e uma gola lisa, esse grosso e resistente pequeno copo teria sido criado para caber nas máquinas de lavar louça então fabricadas pelos comunistas – e se tornaria o preferido dos apreciadores de vodka da União Soviética.

Na administração de Kruschev (1953-1974), com a campanha contra o alcoolismo e a proibição de venda de pequenas garrafas da bebida, as grandes garrafas de 500ml e esses copos teriam sido recorrentes em encontros de amigos que dividiam a vodka. Os russos diziam que “o mundo visto através de um copo canelado é um lugar mais feliz.” Segundo matéria no site Russia and beyond, “o copo de vidro era usado para tudo em todos os lugares”: escolas, hospitais, cafeterias, bebedouros públicos. O copo era a medida de ingredientes de receitas domésticas e o diâmetro de sua borda era a fôrma de corte de bolinhos. Internacionalmente, ficou conhecido como Copo Soviético.

O granyonyi stakan soviético desenhado por Vera Murkhina, 1943. Imagem: Pinterest

O Copo Americano, ou Brasileiro

No pós-Guerra chegamos à parte brasileira da epopeia deste copo. Em 1947, o proprietário da indústria de vidros Nadir Figueiredo projetou o que batizou de Copo Americano. Teria sido fruto do contrabando de algum copo soviético por pracinhas da FEB na Segunda Guerra ou imigrantes russos? Um caso de coincidência? Um aperfeiçoamento nacional de uma tradição milenar? Difícil responder sem acesso aos arquivos da indústria ou registro de depoimentos conclusivos. Nesses mais de 70 anos de história, porém, o Copo Americano se tornaria um ícone do design nacional – talvez até por nosso hábito antropofágico –, e como tal chegou a ser exposto na loja do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) em 2009 na mostra Destination: Brazil [Destino: Brasil].

A blogueira Viviane Aguiar resume a dúvida: “O copo americano não é americano – e talvez nem seja ‘só’ brasileiro.” E mais: “aqui, o copo ganhou o sobrenome ‘americano’ não por causa da procedência, mas, segundo o que oficialmente conta a própria empresa, por ter sido inspirado em similares então produzidos nos Estados Unidos. A Coca-Cola, os filmes hollywoodianos e uma porção de modismos americanos passavam a ser importados de lá para cá nesse momento pós-Segunda Guerra.” Nos alvores da Guerra Fria e do macartismo, talvez não fosse conveniente para uma indústria local fabricar e vender um Copo Soviético, afinal.

Anúncios do Copo Americano no Diário de Notícias (RJ, 29/10/1950) e do Diário da Noite (RJ, 2/4/1956).

Os primeiros anúncios do Copo Americano com esse nome seriam publicados em jornais em 1950 – com destaque sempre para o baixo preço, R$ 2 a unidade hoje. Pelo menos numa cidade, porém, o nome não pegou. Em Belo Horizonte, o copo era originalmente vendido no bairro da Lagoinha, no Centro – famoso pela boemia popular e por ser um dos berços do samba local. Na capital mineira, é chamado até hoje de Copo Lagoinha. Rezava uma lenda local, contada pelo arquiteto Sylvio de Podestá, que o Copo Lagoinha é diferente do Americano pois teria sido invenção anterior de outra fábrica. O copo mineiro seria ligeiramente maior e tinha um dente na quina inferior que permitia inclusive que fosse equilibrado a 30o sobre um gargalo de garrafa de cerveja, num clássico exibicionismo de boteco.

O registro talvez tenha se perdido, mas Sylvio e Fernando Maculan chegaram a criar uma desafiadora Cadeira Lagoinha formada por dezenas de Copos Lagoinha emborcados e empilhados para a mostra Cadeira de Arquiteto realizada há pouco mais de vinte anos nas alterosas. O nome do copo é bastante arraigado por lá. Com duas décadas de existência, o grupo de samba Copo Lagoinha, por exemplo, é um dos mais requisitados e tradicionais de Belo Horizonte. Os mineiros estão tão convictos da autenticidade de sua certidão de batismo que a cervejaria mineira Wäls fez uma campanha pública em 2019 para que Copo Lagoinha se torne a alcunha oficial nacional do produto.

O Copo Lagoinha equilibrado na garrafa. Imagem: Sylvio de Podestá, 2020

Com o sucesso comercial do copo, a Nadir Figueiredo já o apresentaria em três tamanhos em anúncio de 1956 no Diário da Noite – para licor, vinho e água. Hoje são comercializados quatro modelos – de 45ml, 190ml, 300ml e 450ml. Além de uma versão para whisky, uma xícara grande, uma para café – com pires – tigelas e versões coloridas (algumas com brilho na luz negra). Há ainda, além da cadeira dos arquitetos, uma infinidade de obras de arte e design derivadas do copo: luminárias, camisetas, quadros, tatuagens, além de milhares de personalizações pintadas por donos de bares e promotores de eventos nos próprios copos. Compareceu como peça central no cult goiano Sexo com objetos inanimados (2004), de Érico Rassi. Tornou-se enfim um ícone pop nacional, cultuado como símbolo de design popular – charme devidamente explorado pelos fabricantes, é claro – assim como as Havaianas.

Beber com amigos nesses copos tornou-se um verdadeiro ritual de comunhão entre nós. Com suas caneluras clássicas, o copo – ele mesmo – é uma das colunas de nossa relação com a bebida, a noite, os amigos, os amores, a solidão de uma boa cerveja ou cachaça. Mesmo aqueles pouco afeitos aos prazeres e problemas do álcool encontram nesse singelo objeto a companhia de seu despertar num bom café preto ou pingado, tomado em casa ou sobre o balcão de vidro de um mostruário na padaria do bairro. O copo conforma a bebida numa intermediação civilizada, na medida certa, entre um barril, um bule, uma garrafa, e nossos lábios. Beber num copo é um ato social.

Imagem: Blog Cachaçaria Nacional

Um comentário

  1. Danilinho Matoso em plana divagação com o Lagoinha?!!?!! Como disse, bons tempos quando se sentava em torno de uma mesa com uma 600ml e 4 lagoinhas. Parabéns! Academia total mas divertido. Pesquisa de um verdadeiro pósDoc. Abração e até um dia.

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