Atual gestão da Capes quer excluir os comitês de avaliação para classificar periódicos científicos, restando apenas uma avaliação bibliométrica supostamente “objetiva”

por Danilo Matoso
“Publique ou pereça”, reza o bordão acadêmico. Para os pesquisadores brasileiros, tal tarefa parece cada vez mais difícil. Não pela falta de meios, hoje tornados mais acessíveis pela internet, mas pelos mecanismos cada vez mais restritos de aceitação das publicações que se realizam dentro da rede científica global. Assim como o Facebook ou o Google “filtram” por algoritmos aquilo que chega até nós, os órgãos reguladores e as grandes corporações de informação também o fazem dentro do meio científico. Criados para atestar o “impacto” social das publicações, contrapondo o hermetismo próprio da escolástica, esses sistemas podem relegar ao ostracismo as pesquisas publicadas na periferia do mundo.
Há alguns anos, recebi em casa um amigo que participava de um congresso científico. Encontrei-me com ele e outros participantes num bar. Uma moça, tentando puxar papo, dizia-lhe: “eu li um artigo seu sobre…”, ele interrompeu surpreso: “foi você?!”. Isso porque vida de pesquisador nas universidades é antes de tudo solitária. Quem escreve e publica artigos acadêmicos – sobretudo na área de Humanas – sabe que ninguém os lê, quem lê não entende e quem entende discorda. Talvez tal solidão – no laboratório ou na biblioteca – tenha algo a ver com um certo fundamento medieval de nossa cultura acadêmica. A emancipação do pesquisador por meio de dissertações e teses, em mestrados e doutorados, conforme codificado por essas bandas na década de 1960, é antes de tudo uma elevação da capacidade de pesquisa individual.
Evidentemente, tal cultura traz seus vícios. Dois dos mais comuns são, por um lado, as pesquisas “genéricas” que tratam apenas de descobertas já repisadas sem trazer contribuição original e, por outro lado, a especialização num tema que não interessa a ninguém além do pesquisador – normalmente escrito num jargão que só o autor e os membros de seu campo conhecem. Daí a solidão.
Um idioma próprio
É bem verdade que todo círculo social e profissional tem seu dialeto distintivo que identifica os iniciados e exclui a “massa ignara”. A formação da cultura acadêmica não seria diferente, e houve mesmo quem buscasse desenvolver um idioma próprio da ciência, em substituição uso da língua latina – herdado da tradição escolástica.
Num conhecido ensaio de 1952, Jorge Luís Borges rememora a tentativa do lente de Oxford e secretário da Royal Society John Wilkins (1614-1672) de criar um “idioma analítico”, exposto no livro An Essay Towards a Real Character and a Philosophical Language, publicado em 1668. Segundo Borges, Wilkins “dividiu o universo em quarenta categorias ou gêneros, subdivisíveis logo em diferenças, subdivisíveis por sua vez em espécies. Atribuiu a cada gênero um monossílabo de duas letras; a cada diferença uma consoante; a cada espécie, uma vogal. Por exemplo: de, quer dizer elemento; deb, o primeiro dos elementos, o fogo; deba, uma porção do elemento do fogo, uma chama”.
No Brasil, tivemos uma versão avançada de empreitada análoga entre os números impressos pelo frei José Mariano da Conceição Veloso (1742-1811) na Casa Literária do Arco do Cego, na virada do século 18 para o 19, destinadas a promover pela ciência o desenvolvimento econômico no Brasil, na melhor tradição iluminista. Em 1800, José Maria Dantas Pereira de Andrade (1772-1836) daria aos prelos da Officina da Casa Litteraria do Arco do Cego uma Memoria sobre hum projecto de pasigraphia em que propunha um idioma universal “absolutamente novo” e “tão perfeito quanto o possam alcançar os juízos humanos” composto exclusivamente por números escritos em algarismos arábicos, compostos de acordo com uma associação entre semântica e sintaxe. Dantas Pereira baseava-se num sistema francês da lavra de Joseph de Maimieux (1753-1820) publicado no último apêndice ao The Monthly Review de 1797.
Nenhum desses sistemas generativos universais foi levado adiante. A língua predominante nas publicações científicas é a que sempre foi: a língua das nações economicamente dominantes, capazes de produzir mais ciência. Por mais cifrado, por mais fechado que determinado jargão técnico seja, ele se mantém dentro dos limites linguísticos relativamente conhecidos, talvez para uma garantia mínima de inteligibilidade por um grupo relativamente amplo. A academia vive, em todo caso, numa constante disputa entre restrição de campo por meio da linguagem e desejo de ampla publicidade. Casos como o do Menino do Acre, que inventou um alfabeto e um idioma para uma teoria cabalística, não são considerados normalmente como ciência – em que pesem os esforços recentes dos terraplanistas e adeptos do QAnon.
Da desfortuna ao ostracismo da objetividade
Encontrar o equilíbrio entre a linguagem hermética do conhecimento especializado e aquela que torna um texto legível e bem conhecido não é fácil nem simples. Nem mesmo Karl Marx, que era mais ativista político que teórico, escapou em seu tempo dos infortúnios da crítica pouco generosa da impopularidade. Em suas teses ad Feuerbach, escritas em 1845 e não publicadas, o alemão vaticinaria: “a questão de saber se ao pensamento humano cabe alguma verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na prática que o homem tem que provar a verdade, isto é, a realidade e o poder, a natureza interior de seu pensamento. A disputa acerca da realidade ou não realidade do pensamento – que é isolado da prática – é uma questão puramente escolástica”.
Em 1859, porém, Marx publicaria em Berlim o estudo Para a crítica da economia política, com nada menos que algumas das ideias seminais de O capital. Não teve boa acolhida em seu tempo. Segundo a cronologia biográfica da editora Boitempo, “o livro, muito esperado, foi um fracasso. Nem seus companheiros mais entusiastas, como Liebknecht e Lassalle, o compreenderam”. Marx morreria pobre, precocemente envelhecido, aos 64 anos. Embora fosse bem conhecido nos círculos políticos, sua glória intelectual, e depois acadêmica, seria obra de ampla campanha de seus correligionários do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) e dos revolucionários russos fundadores da União Soviética.
Os norte-americanos, apóstolos do utilitarismo e da objetividade, buscaram estabelecer um padrão para medir a influência de um texto ao criar o conceito de “Fator de Impacto” em meados do século passado. A partir de índices bibliográficos amplos, seria possível rastrear o número de citações de determinado artigo ou livro por terceiros, determinando assim a sua pertinência para o seu campo de estudos. Eugene Garfield (1925-2017) propôs então o Índice de Citações da Ciência (SCI), administrado pelo Jornal de Relatório de Citações (JCR), hoje parte da chamada Web of Science [Rede da Ciência], que conta com dez índices temáticos. Esse sistema, gerenciado pela empresa Clarivate Analytics, tornou-se um dos padrões de avaliação de periódicos científicos mundo afora. Com milhões de textos publicados anualmente, conta com computadores e poderosos algoritmos capazes de gerenciar o cadastro, a busca e a aferição de tais resultados.
Tais ferramentas estão na base do sistema de classificação de periódicos científicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A tarefa de valoração é feita por um comitê nacional de especialistas, porém, cuja análise qualitativa da natureza das citações e do tipo de periódico avaliado é o critério final, para além da suposta objetividade dos dados bibliométricos. Quanto mais periódicos bem avaliados um programa de pós-graduação uma faculdade ou uma universidade tem, maior seu prestígio, e mais verbas de incentivo recebe. Com isso, seria possível incentivar periódicos recentes, de instituições pequenas, mas com textos qualificados.
Ao que parece, a atual gestão da Capes quer excluir os comitês de avaliação da equação. Segundo denúncia do professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Luís Felipe Miguel, “os periódicos acadêmicos serão classificados de acordo com índices bibliométricos. É algo ‘objetivo’ e liquida de vez as discussões sobre a nota atribuída a cada revista. Decisão vertical, a ser cumprida por todas as áreas”. Num sistema análogo ao da economia de mercado, que favorece naturalmente a formação de monopólios, as universidades maiores, com mais recursos, ficarão cada vez maiores. As menores, cada vez com menos recursos, ficarão cada vez menores.
Aos pesquisadores e programas parece restar agora a tarefa de decifrar os algoritmos da Web of Science na tentativa de minimizar o dano. Afinal, não basta publicar e ser citado: é preciso publicar e ser citado nos periódicos indexados internacionalmente. Àqueles que publicam importantes descobertas científicas em periódicos secundários, resta o ostracismo em vida e a esperança da glória póstuma. Por hoje, receberão cada vez menos recursos e, como dizia um célebre acadêmico, “amanhã estaremos todos mortos”.