A mulher soviética

As conquistas de direitos das mulheres na revolução de 1917 influenciariam o mundo inteiro e mudariam a existência de milhões de mulheres na URSS

Imagem: Everett Collection
por Alexandre Flach

O texto abaixo é a sétima parte da série Fogo e revolta nas ruas: para onde vai a luta popular?

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No mundo capitalista, a simples possibilidade biológica de ser mãe definirá praticamente tudo na vida do ser humano. Será suficiente para ganhar menos pelas mesmas funções, ter menos oportunidades de trabalho, na maior parte subalternas e distantes das áreas mais visceralmente vinculadas à produção do capital, como indústria, engenharia, pesquisa científica e até transporte, e dos cargos políticos de maior relevo e importância, facilitando bastante um golpe, inclusive, se por um acaso heroico do destino você for eleita Presidenta da República.

Nascer com uma vagina, no nosso mundo, vai jogar em você toneladas de uma muito bem estruturada cultura de sexualização e objetificação do seu corpo, regulando seu comportamento, sua autoimagem, obrigando-lhe a ser “bonita”, sorridente e amiga. Impondo a sua escolha por longos cabelos bem cuidados, cuidando para sempre ter quadril, peito e barriga “no lugar”, e enquanto não vencer o seu prazo de validade, você será responsável por tudo o que é homem que cativa, até sem querer, e dos filhinhos que chegarem através da bênção da plena realização de “ser mulher”.

Depois que já não estiver mais no “mercado” afetivo-sexual, agora sim você estará livre para passar à categoria de sombra viva que ninguém nem nota na rua, resignando-se ao papel de vovozinha doce e assexuada, com direito compulsório a uma desaposentação para ser obrigada a gostar de cuidar dos netos carentes, mimados e remelentos da filha separada, que, afinal, tem o direito de trabalhar e viver a “sua vida” na balada, já que dar é obrigação e abortar é pecado.

Mas não seria forçar muito a barra achar que tudo isso aí é culpa do capitalismo? E como é que fica a milenar cultura patriarcal-opressora que resiste em pleno século XXI apenas e tão somente porque não conseguimos ainda alcançar um índice suficiente de feminismo e mulheres empoderadas para derrubar essa macharada tosca?

Minha mãe grávida se separou do meu pai: “ele não fazia nenhum sentido”

Fora do mundo capitalista, ora vejam só, nem tudo era assim:

Há uma ferrovia na Sibéria que foi construída por minha avó e outras mulheres soviéticas. Casada duas vezes e duas vezes divorciada, vovó estava sempre tão ocupada no trabalho que não tinha tempo para os próprios filhos. Minha mãe se divorciou do meu pai quando estava grávida porque “ele simplesmente não fazia nenhum sentido”. Ao contrário de muitas mulheres que temem a solidão ou a pobreza, ela sabia que podia dar conta de tudo sozinha. Ela aprendeu isso com minha avó, e eu aprendi isso com ela. (Vicky Lova, para a Russia Beyond)

Assim que os bolcheviques – e principalmente, AS bolcheviques – tomaram o poder, a mulher russa de 1917 passou a ter direitos que até hoje são apenas utopia para a grande maioria das suas camaradas ocidentais, que lutam debaixo do capitalismo: aborto livre, divórcio simples e sem restrições, autonomia econômica, salários e oportunidades iguais em carreiras “masculinas”, participação real na vida pública, licença-maternidade, menos obrigações compulsórias com filhos através de creches e escolas onde eles podiam passar dias sem qualquer problema.

Nem ostentar beleza nem dar uma de machão, a mulher soviética antes de tudo era uma trabalhadora.”Construção da Usina Hidrelétrica Ust-Ilimsk no rio Angara, 1973″ Imagem: Rudolf Alfimov/Sputnik

Como o soviético tinha noção de que tudo o que existe foi feito por um outro trabalhador como ele – e não um simples “objeto de consumo” nascido por geração espontânea, como costumamos ver no capitalismo – para qualquer um, incluindo as mulheres, a maior desonra que poderia existir seria não trabalhar, não fazer a sua parte na sociedade, ser um parasita. Gente que não trabalha, em um regime como o soviético, seria o equivalente perfeito ao assim chamado “bandido” da cultura burguesa ocidental: quase ninguém quer levar um desses pra casa.

Ao contrário das mulheres do mundo capitalista, igualdade para a mulher soviética não estava relacionada a uma simples autoafirmação comportamental ou pequenas alterações de linguagem (“boa tarde a todas e todos”). O importante era ser plena na cidadania socialista. A mulher soviética tinha que ser economicamente independente, produtiva, politizada e trabalhadora, mas, segura da força de sua feminilidade, não dispensaria apoio ou gentilezas masculinas:

Este é meu problema com o feminismo norte-americano: ao invés de igualdade de direitos e de remuneração, ele está se transformando em uma coisa do tipo “eu-consigo-fazer-isto-totalmente-sozinha”, além de uma agressão em relação aos homens e, pior ainda, em relação a mulheres que sentem ou pensam de forma diferente. “Vamos dividir a conta, e nem se atreva a abrir a porta para mim, porque eu ‘consigo-fazer-tudo-sozinha’”, diz uma feminista americana venenosa. Na Rússia, não passa pela cabeça de uma mulher comprometer sua feminilidade para reivindicar um lugar ao sol. (Vicky Lova, para a Russia Beyond)

A mulher soviética certamente cuidava da sua aparência, mas as garotas das Repúblicas Soviéticas dificilmente dariam atenção a um poetinha comunista que escrevesse uma “Receita de Mulher” do tipo “as muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”. Ainda mais em plenos 1959! As muito qualquer coisa russas gostavam de se cuidar, mas, sem nenhum perdão a Vinícius, passava longe achar beleza fundamental. [link: https://br.rbth.com/historia/81021-12-fotos-retro-forca-mulheres-sovieticas%5D

Muitas garotas eram tímidas, e algumas até ficavam bravas quando alguém as chamava de bonitas. Imagem: Vsevolod Tarasevich/MAMM/MDF

Mas de onde veio esse mulherão todo, meu Marx?

Em lugar nenhum do mundo a mulher ganhou espaço sem luta. Imagina se justo na Rússia seria diferente! A Rússia pré-revolução de 17 era aquele país em que os seus mais aclamados pensadores, profundamente humanistas, como Tolstói, não hesitavam em dizer que o lugar da mulher no mundo era o de “bem servir ao marido e aos filhos”. Mas para desespero da elite russa e da dinastia Romanov, a mulherada operária de 1917 não pensava bem assim.

O dia 23 de fevereiro de 1917 (08 de março no calendário ocidental) era o Dia Internacional da Mulher. Os círculos da socialdemocracia tencionavam festejá-lo segundo as normas tradicionais: reuniões, discursos, manifestos. Nenhuma organização preconizava greves para aquele dia. A mais combativa das organizações bolcheviques – o Comitê do bairro de Vyborg, essencialmente operário – desaconselha a greve. Como o Comitê julgasse que o momento de agir ainda não era chegado, decidiu não lançar mão da greve, mas apenas preparar-se para a ação revolucionária em data indeterminada. Tal foi a linha de conduta preconizada pelo Comitê, nas vésperas do dia 23, e parecia ter sido aceita por todos. No dia seguinte, apesar de todas as determinações, as operárias têxteis de diversas fábricas abandonaram o trabalho e enviaram delegadas aos metalúrgicos, solicitando-lhes que apoiassem a greve. Foi “contra a vontade”, escreve Kayurov, que os bolcheviques entraram em greve, secundados pelos operários mencheviques e socialistas revolucionários. (Leon Trótski, em “A História da Revolução Russa”)

Cansadas de passar fome e de ver seus maridos morrerem nas guerras inúteis da elite russa, as mulheres da indústria têxtil de Petrogrado passaram por cima das ordens dos machos bolcheviques e iniciaram uma revolução que, em uma semana, enterraria para sempre a poderosa dinastia dos Romanov, há oito gerações oprimindo o povo russo.

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Mulherada na rua, no dia da mulher de 1917, Petrogrado. As mulheres russas literalmente deram à luz a primeira revolução operária da história da humanidade. Em uma semana, o czar cairia para nunca mais… Imagem: reprodução

Dá para perceber porque depois de tomar definitivamente o poder para os trabalhadores (e para as trabalhadoras…), Lênin e os demais bolcheviques tiveram que garantir tudo o que as mulheres da Revolução Russa queriam, sem titubear. Estava claro que não existiria União Soviética sem elas. Mas não era só de paixões revolucionárias que vivia a mulher bolchevique. Além do coração quente para a luta, elas também foram notáveis no campo frio e masculino que até então era um verdadeiro monopólio da macharada: a racionalidade intelectual.

A mente brilhante das mulheres bolcheviques: Alexandra Kollontai

Não tem como conhecer o modo de vida e a visão de mundo da mulher soviética sem conhecer a mente brilhante de uma das mulheres que mais influenciou a política, as estruturas e a vida da jovem nação revolucionária: Alexandra Kollontai.

Alexandra está entre os maiores expoentes do feminismo bolchevique e do pensamento marxista em geral. Sem dúvida, foi uma das mais importantes responsáveis pelos avanços nas condições de vida e diretos da mulher russa terem ocorrido logo na primeira hora da revolução. Uma mulher realmente cheia de poder, tornou-se a primeira Ministra de Estado na história ocidental, ao ser nomeada Comissária do Povo para Assuntos do Bem-Estar Social, em 1917. Era membro do poderoso Comitê Central do Partido Comunista Russo e foi co-fundadora do Zhenotdel, seção do Partido Comunista especialmente dedicado aos interesses das mulheres.

“A Revolução Russa, como um movimento espontâneo das massas, não é propriedade de nenhum grupo ou partido.” Revolucionária, teórica comunista e líder bolchevique: a produção intelectual de Alexandra Kollontai permanece inquietante e assustadoramente atual, há mais de cem anos. Imagem: reprodução

Por diversas vezes polemizou com outros bolcheviques, chegando a integrar a importantíssima Oposição Operária no Partido Comunista, em que, às vésperas da eleição de Stálin como Secretário Geral do Politburo, alertava para “os perigos de degeneração burocrática e consequente isolamento das massas” que ameaçava a revolução, propondo o restabelecimento da democracia popular dos primeiros períodos após 1917, exercida por meio dos conselhos populares – soviets – assim como o controle direto das indústrias pelos operários, através de eleições diretas de suas direções.

XI Congresso

No XI Congresso do Partido Comunista, a Oposição distribuiu um longo texto, redigido por Alexandra, que tratava em minúcias, e com profunda base marxista, sobre esta que era a contradição fundamental da revolução russa: a oposição que surgiu entre o centralismo leninista e a democracia operária. Alexandra considerava que “a direção ‘do homem único’ era produto da concepção individualista da classe burguesa”, devendo assim ser abandonada “a noção de que alguns líderes possam emancipar os trabalhadores, a partir de suas mesas, devidamente instaladas nos prédios do governo” (A Oposição Operária no Partido Comunista Russo).

Resultado? Por pouco Alexandra e os demais membros da Oposição não foram expulsos do partido logo após o Congresso, que acabou seguindo o modelo defendido por Lênin e Trótski, centralizando o poder em burocratas oriundos do que havia sobrado dos pequeno-burgueses russos, os mesmos que até minutos antes da revolução trabalhavam para o capital. A teimosia pouco marxista dos machões bolcheviques, afastando as organizações operárias do poder, tornou praticamente inevitável a era stalinista, pouco importa quem a comandasse.

Levando em consideração o colapso total de nossas indústrias, enquanto ainda se apegam ao modo capitalista de produção (pagamento pelo trabalho em dinheiro, graduação nos salários recebidos de acordo com o trabalho realizado), os líderes de nosso partido, em um acesso de desconfiança nas habilidades criativas dos coletivos de trabalhadores, estão buscando a salvação do caos industrial – onde? Nas mãos de descendentes dos antigos empresários e técnicos burgueses-capitalistas, cujas habilidades criativas no âmbito da indústria estão sujeitas às rotinas, hábitos e métodos do sistema capitalista de produção e economia. São eles que introduzem a crença ridiculamente ingênua de que é possível provocar o comunismo por meios burocráticos. (Alexandra Kollontai em “The Workers Opposition in the Russian Communist Party: The Fight for Worker Democracy in the Soviet Union”)

Agora, imaginem dizer isto com o jovem Stálin na plateia, prestes a tomar o secretariado geral do partido, de onde somente sairia 30 anos e inúmeros expurgos depois! Após esse rebuliço, certamente o grande feito de Alexandra foi ter conseguido morrer de causas naturais, em 1952. Nenhum de seus companheiros teve a mesma sorte.

A vida íntima

Alexandra não estava focada apenas nas macro relações entre as classes. A vida íntima, amorosa e a moral sexual também estavam no centro de seus interesses e da sua prática revolucionária. Para a bolchevique, o amor era questão de fundamental interesse para a revolução socialista. “Entre as múltiplas ideias fundamentais que a classe trabalhadora deve levar em conta em sua luta para a conquista da sociedade futura, deve estar, necessariamente, o estabelecimento de relações sexuais mais sadias e que, portanto, tornem a humanidade mais feliz”. (Alexandra Kollontai em “As Relações entre os Sexos e a Luta de Classes”).

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Da mesma forma que é inevitável a transição econômica do capitalismo para o socialismo, os afetos também sofrem necessariamente a transição da ideologia burguesa para a ideologia do proletariado. Ao contrário de poucos anos atrás, hoje em dia se o amorzinho delícia não tiver altas doses de companheirismo operário para ser sustentado, a fila vai andar rapidinho. Nem adianta insistir. O contrato burguês “para a vida toda” com marido patrãozinho-burguês e esposa mulherzinha-submissa já era – a não ser para alguns extratos da alta burguesia e para o mundo azul-rosa-fascista da Damares.

Para seres humanos normais, relacionamento duradouro tem que ser baseado na solidariedade e igualdade do casal, características do povo trabalhador, além da liberdade própria do socialismo, é claro:

Sobre as ruínas da velha vida familiar, veremos ressurgir uma nova forma de família que suporá relações completamente diferentes entre o homem e a mulher, baseadas em uma união de afetos e camaradagem, em uma união de pessoas iguais na sociedade comunista, as duas livres, as duas independentes, as duas operárias. Não mais “servidão” doméstica para a mulher! Não mais desigualdade no seio da família! (…) Esta união livre, forte no sentimento de camaradagem em que está inspirada, em vez de escravidão conjugal do passado, é o que a sociedade comunista de amanhã oferecerá a homens e mulheres. (Alexandra Kollontai em “O comunismo e a família“)

Lembrando que estamos em 1911, onde o amor homossexual ainda estava muito bem guardadinho no armário. Mas já naqueles dias, Alexandra denunciava o ranço da ideologia capitalista interiorizada na intimidade dos casais enamorados. Contaminado pela ideologia da burguesia, o indivíduo pensa que ser namorado ou esposa de alguém significa também ser dono da alma do pobre coitado. Amor proprietário: casamento. Amor de aluguel: namoro. Unboxin e teste-drive para avaliar o custo-benefício: “ficar”. E por aí segue o amor-contrato burguês, assim como a solidão crônica e incurável a que somos condenados pelo capitalismo.

A terrível solidão que o homem sente nas imensas cidades populosas, nas cidades modernas tão irrequietas e tentadoras; a solidão, que não é dissipada pela companhia de amigos e companheiros, é que o impulsiona a buscar, com avidez doentia, a sua ilusória alma gêmea, num ser do sexo oposto, visto que só o amor possui o mágico poder de afugentar, embora momentaneamente, as angústias da solidão. Entretanto, por enquanto, a humanidade tem que sofrer, ainda, a solidão moral e não há outro remédio senão sonhar com uma época melhor na qual todas as relações humanas se caracterizem por sentimento de solidariedade, que serão possíveis por causa das novas condições da existência. (Alexandra Kollontai em “As Relações entre os Sexos e a Luta de Classes“)

E sobre aquele hábito patético de colocar o(a) recém-chegado(a) parceiro(a) sexual em uma verdadeira masmorra para que “confesse” todas as transas e amores anteriores?

Dois amantes, que mal tiveram tempo de conhecer-se em suas relações múltiplas, apressam-se a estabelecer seus direitos sobre as relações sexuais do outro e intervir no mais sagrado e no mais íntimo de sua vida. Seres que ontem eram dois estranhos, hoje, unicamente porque os unem sensações eróticas, apressam-se a apossar-se da alma do outro, a dispor da alma desconhecida e misteriosa sobre a qual o passado gravou imagens inapagáveis e a instalar-se no seu interior como se estivesse em sua própria casa. Esta ideia da posse recíproca de um casal amoroso estende seu domínio de tal forma que pouco nos surpreende um fato tão anormal quanto o seguinte: dois recém-casados viviam até ontem cada um com a sua própria vida; no dia seguinte à sua união, cada um deles abre sem o menor escrúpulo a correspondência do outro inteirando-se consequentemente, do conteúdo da carta procedente de uma terceira pessoa que só tem relação com um dos esposos e se converte em propriedade comum. (…) O que se busca, em geral, é legitimar essa intimidade, baseando-se na ideia equivocada de que comunhão sexual entre dois seres é suficiente para estender o direito de propriedade sobre o ser moral da pessoa amada. (Alexandra Kollontai em “As Relações entre os Sexos e a Luta de Classes“)

Libertar a mulher das tarefas domésticas

Para a bolchevique, a mulher soviética teria que ser libertada da escravidão caseira, das obrigações de lavar, passar, cozinhar e, até mesmo, de cuidar dos filhos. Todas estas tarefas teriam de ser apenas uma opção e não uma determinação “da vida” (leia-se: do sistema). As obrigações domésticas deveriam ser rapidamente substituídas por estruturas industriais coletivas, operadas por pessoas especialmente dedicadas a estas atividades.

Na Rússia Soviética, a vida da mulher trabalhadora deve estar rodeada das mesmas comodidades, a mesma limpeza, a mesma higiene, a mesma beleza que até agora constituía o ambiente das mulheres pertencentes às classes endinheiradas. Em uma sociedade comunista a mulher trabalhadora não terá que passar suas escassas horas de descanso na cozinha, porque nela existiriam restaurantes públicos e cozinhas centrais nos quais poderá comer todo mundo. O mesmo se pode dizer da lavagem de roupa e demais trabalhos caseiros. Terá apenas que levar as roupas, cada semana, às lavanderias centrais para ir buscá-la depois lavada. Desse modo, a mulher trabalhadora terá uma preocupação a menos. A organização de locais especiais oferecerão à mulher trabalhadora a oportunidade de dedicar suas noites a leituras instrutivas, a distrações saudáveis, ao invés de passá-las como até agora em tarefas esgotantes.” (Alexandra Kollontai em “O Comunismo e a Família“)

Em resumo, na visão da bolchevique não bastaria um “empoderamento” subjetivo ou moral da mulher. Alexandra Kollontai influenciou a vida soviética exatamente porque lutou para que a sociedade se tornasse capaz de assumir a tarefa da reprodução física da sociedade, a geração e o cuidado pelas novas gerações, que no mundo capitalista é despejado nas costas das mulheres, como uma bênção da natureza, vejam só. Somente livre deste jugo através de mudanças concretas no modo de vida da sociedade, a mulher poderia ser real e completamente emancipada do jugo do patriarcado.

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O resultado da luta: nem tanto, nem tão pouco. Dentro de casa, patriarcado raiz. Na sociedade, os homens tinham que baixar a cabeça para a camarada

Para fazer uma simplificação grosseira, a opressão da mulher no mundo capitalista tem pelo menos cinco bases materiais : a dependência econômica, a obrigação de gerar a nova geração, a obrigação de cuidar da nova geração, a obrigação de cuidar da casa e do companheiro e a maldição do casamento indissolúvel.

Como o mundo passa por uma transição entre o capitalismo e o socialismo, algumas dessas estruturas já se moveram em favor da mulher, outras não e, em muitos casos surgiram novas contradições. No Brasil, por exemplo, a mulher de classe média empurrou a casa e os filhos para a mulher operária, a fim de conquistar alguma independência econômica e consequente autonomia sexual. Já a mulher operária, por sua vez, luta para conquistar o direito de cuidar de seus filhos (empurrados para a rua, para o tráfico e para a cadeia), e cairia muito bem um casamento indissolúvel, com um marido que desse sustentação econômica.

Em resumo, a mulher operária brasileira, oprimida pelo capitalismo, pelo patriarcado e também pela mulher pequeno-burguesa, em geral, não tem qualquer possibilidade de lutar individualmente por própria emancipação. Sua luta, mais do que qualquer outra, demanda necessariamente uma transformação coletiva da sociedade, nos moldes que ocorreram com a mulher soviética, que, ao contrário da mulher de classe média brasileira, não precisou jogar a sua opressão nas costas de ninguém. O que foi conquistado por uma, tornou-se conquista de todas.

Mas nem tudo para o que Alexandra Kollontai e suas companheiras lutaram, de fato aconteceu. Das cinco opressões, a mulher soviética se livrou de três: dependência econômica, casamento indissolúvel e obrigação de cuidar das novas gerações. A obrigação de gerar novas gerações foi bastante amenizada, mas na URSS, a mulher não conseguiu se livrar das tarefas domésticas de jeito nenhum.

O clássico do cinema soviético, “Moscou não acredita em lágrimas” retrata a vida de uma mãe solteira soviética, cujo apoio da configuração soviética de sociedade lhe permitiu ter sucesso em sua carreira, ainda que com enorme esforço individual. Já na década de 50, a protagonista Alexandra não sofria nenhuma opressão moralista por ser mãe “sem marido”, mas na vida doméstica os homens tinham grande dificuldade em lidar com uma companheira mais bem-sucedida.

O pleno emprego soviético garantia a fonte de renda de todas as mulheres russas e os cuidados da sociedade com as crianças lhes davam tempo e disponibilidade para seguir carreiras que as ocidentais não podiam nem sonhar. Entretanto “os homens ainda viam o trabalho doméstico como trabalho feminino, o que colocava muito mais estresse sobre as mulheres, tendo que suportar a carga de trabalho fora e dentro de casa. (Molly Wolanski em “The Role of Women in Soviet Russia”)

Além disto, houve altos e baixos. O camarada Stálin condenava o aborto e relações românticas fora do casamento, e depois da sequência de guerras terem dizimado boa parte da população russa, o georgiano preferia que as mulheres exercessem seu papel “tradicional” de parideiras e cuidadoras: “As mulheres na Rússia stalinista foram tratadas de maneira um pouco diferente do que sob outros líderes. Em alguns casos, as mulheres passaram a receber empregos de nível inferior para incentivá-las a ficar em casa e ter mais filhos.”

Mas a burocracia denunciada por Alexandra Kollontai também pesou sobre as mulheres, e a luta feminista continuou a existir durante toda a vida da URSS: “Embora nossos líderes digam que a família soviética não tem problemas, há violência por parte dos homens… e as condições de tratamento nas maternidades e hospitais é terrível para as mulheres”, disse a ativista Natalia Malakhovskaia durante uma entrevista para a Rádio Svobôda-Liberty.

Em 1979, Natália e duas colegas publicaram ilegalmente um almanaque chamado “Mulheres e a Rússia”. Este almanaque, e também outros jornais feministas, circulavam em segredo, repassados por círculos de amigas. Ao serem descobertas pelas autoridades, as principais colaboradoras desses círculos foram consideradas “dissidentes” e foram forçadas a emigrar.

E assim seguimos, partisanos!

A esta altura, não é preciso dizer mais nada sobre a fundamental importância da experiência soviética para a luta popular em todos os povos e épocas.

Não é à toa que a União Soviética esteja virando uma verdadeira spin-off da nossa série “Fogo e Revolta nas ruas: para onde vai a luta popular?”. Já dá para ver que a República dos Soviets de “carne e osso”, como tudo na vida, tinha coisas ótimas e outras nem tanto, mas, no geral, trouxe para o seu povo uma vida bem boa, que até hoje é inimaginável para a imensa maioria dos trabalhadores do mundo ocidental. No Brasil, com seus 29 milhões de pobres-novos, a nova classe D pós Lula-Dilma, nem se fale.

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Nas próximas conversas dessa subsérie dedicada à URSS, vamos ver um pouco mais da sociedade soviética, seus altos e baixos, mas sempre procurando sair das bolhas tanto do ódio burguês como da fantasia camarada para chegar, até onde der, na realidade vivida por gente como a gente, mas que teve a sorte de nascer e viver no primeiro Estado Operário da história da humanidade.

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