A existência de um mercado que se destina a negociar a arte enquanto produto alheio ao seu propósito real é a própria morte da arte sendo colocada em prática

por Matheus Dato
Não existe, até o atual momento de nossa história social, qualquer ideia política, projeto de mundo ou mesmo a mais abstrata idealização da realidade que não tenha se preocupado, mesmo que brevemente, com a existência e o conceito da arte enquanto atividade natural do homem. A investigação acerca da beleza, da produção do belo e da natureza do senso artístico humano é tão antiga quanto a própria filosofia e muito anterior à esmagadora maioria de ciências existentes hoje.
Indo além deste fato, surpreende constatar que a manifestação artística em si possui lugar histórico antes mesmo do surgimento dos seres humanos individuais formularem suas primeiras interpretações conscientes de sociedade e coletividade. É possível, segundo descobertas arqueológicas na Indonésia, que o desenho mais antigo já encontrado possua mais de 400.000 anos; nossa raça, o homo sapiens, possui aproximadamente dez vezes menos tempo de existência que isso.
A conclusão mais honesta que podemos retirar de uma descoberta como esta é que a arte não é mero acaso, mas sim um processo construído de maneira definitiva e fundamental. Para penetrarmos de vez no tema deste texto, basta dizer que apenas uma atividade é mais propriamente humana que a arte: o trabalho. E exatamente aqui chegamos ao ponto central da análise proposta.
Em 1844, um jovem Karl Marx redigiu os Manuscritos Econômico-Filosóficos. A importância deste texto para a compreensão da ciência do proletariado, o comunismo, é inquestionável e ainda desconhecida por um vasto número de homens e mulheres de luta, mas aqui nos ateremos a um dos principais conceitos elaborados na obra – a categoria de trabalho, alienação e trabalho alienado. Antes de relacionar tais análises com o mundo da arte, uma breve explicação é necessária. Trabalho, para Marx e o marxismo, é a aplicação de força de trabalho sobre a natureza, a fim de modificá-la para a satisfação de uma necessidade humana; é óbvio a nós que a complexificação da sociedade moderna traz muitas outras maneiras de trabalhar, mas prossigamos.
Chamamos alienação, aqui, a atitude de estranhamento do homem diante do produto de seu trabalho, diante da natureza e da sociedade ao seu redor, diante da produção e diante de si mesmo. O ser humano se separa do mundo diante do fenômeno da alienação.
Trabalho alienado refere-se ao ato de produzir submetido às condições citadas anteriormente, submissão esta causada ou gerida por um elemento humano não-trabalhador.
Ditas essas coisas, enfrentamos a difícil tarefa de analisar o estado da arte em nossa sociedade. Difícil, pois Marx e Engels não deixaram em suas investigações científicas uma teoria estética-artística e, embora a relação entre arte e trabalho seja concretamente perceptível, não é tarefa simples conceber esta realidade de maneira imediata. O escritor Maynar Solomon nota, com um certo tom de ironia, que Marx e Engels se encontravam “distraídos demais pela filosofia” para falar com mais propriedade sobre a vida artística.
Entretanto, ao observar como a classe trabalhadora explorada e oprimida se relaciona com a arte, e também ao enxergar o artista como trabalhador, podemos começar a elucidar como esta atividade histórica se reproduz no capitalismo como alienação da sociedade e de si própria.
Recordando o ensinamento do materialismo histórico, a forma que todas as coisas adquirem sob o poder do capital é a mercadoria. Não somente as coisas e as relações se tornam mercadoria com seu respectivo valor de uso e valor de troca, mas também o homem é a mercadoria. A principal, na realidade.
A consequência mais próxima deste fato é que a mercadoria adquire um valor maior do que aquilo que aparenta, se tornando objeto de fetiche, um desejo místico e irreal que enxerga poder naquilo que é não-humano. E assim é com a arte, negociada e adquirida como qualquer outro produto da máquina de riquezas do capitalismo.
O problema disto tudo é que a arte é precisamente a atividade humana mais distante daquilo que chamamos de alienação. A arte é a expressão material do interior, da consciência social, da realidade imediata do passado, do presente e do futuro e é a exteriorização daquilo que o homem somente é capaz de conceber e perceber em um plano mental. Mesmo estando subjugada e condicionada às relações estruturais e superestruturais vigentes, a arte tem o potencial de exceder o imediato e o aparente, e comunica uma realidade que permaneceria para sempre restrita ao indivíduo se não fosse possível apresentá-la pela manifestação da linguagem artística. O psicólogo e pedagogo Lev Vigotski (1896 – 1934) definia que “a arte é uma técnica social do sentimento, um instrumento da sociedade através do qual incorpora ao ciclo da vida social os aspectos mais íntimos e pessoais do nosso ser.”
Ao mesmo tempo que submetida à tirania da mercadoria, a arte se mostra expressão livre do homem, e mesmo pessoal, jamais deixa de ser social. Como toda fina composição da realidade, a arte existe em um relação dialética.
Quando nos vemos no patamar de uma sociedade mercantilizada e submetida à dominação de classe, aparece claro a nós que o modo capitalista de produzir e viver é incompatível com uma arte realmente humana. Ao aprisionar o homem nas relações de trabalho existentes entre proletários e burgueses, também a classe dominante aprisiona o espírito artístico e, pior, aparelha toda a produção de belezas para seus fins de luxo e propaganda. Se assumimos que a valorização das coisas implica na desvalorização dos homens, e se percebemos a dinâmica social de que o sofrimento de muitos edifica a alegria de poucos, chegamos ao ponto de entender como a classe dominante opera, em seu proveito, o mundo e o mercado artístico (que palavra odiosa!).
A mercadoria artística em ação
Ora, você trabalha ao menos oito horas por dia, não possui bens e encontra-se às portas da necessidade a todo momento. Imagino então que não possas gastar muitas horas comprando e vendendo arte, caminhando em museus e negociando criações humanas como se fossem galinhas ou bananas; há quem possa se dar este privilégio, todavia.
Em 2019, o mercado da arte movimentou anualmente 60 bilhões de dólares. Com a pandemia experimentada no ano de 2020, mercados de luxo foram capazes de manter altas somas de lucro, visto que seu público alvo ganhou bastante dinheiro em meio à catástrofe vivenciada por todo o planeta. A venda de obras de arte não se tornou exceção.
O ramo da arte de alto padrão, a bem da verdade, é uma das atividades econômicas mais especulativas da atualidade, sendo a variação de preços e a auferição de lucros largamente controlada por monopólios bem estabelecidos e, ao modelo da burguesia contemporânea, possuidores de um sem-número de outros negócios. A manipulação das tendências artísticas, a valorização e desvalorização programada de artistas e peças e a relação escusa das grandes galerias com métodos de evasão fiscal e lavagem de dinheiro deixam marcas claras de que um grupo seleto de galerias são uma cadeia comercial antipopular, elitista e parasitária.
A contradição entre capital e trabalho, por sua vez, aparece no mercado artístico com novas conotações: manifesta-se através da superelevação do valor de troca, dado que a arte não possui valor de uso, via de regra. Em outras palavras, se esquece a obra artística, independentemente de sua qualidade, para dar lugar ao retorno financeiro trazido pela comercialização da mercadoria. Se decidíssemos abrir esta discussão para o mercado fonográfico, a indústria do cinema e a mídia hegemônica, poderíamos falar ainda muito mais sobre as relações do empresariado artístico com a manutenção da ordem social capitalista e novas formas de enriquecimento dos mais ricos.
A existência, portanto, de um mercado que se destina a negociar a arte enquanto produto alheio ao seu propósito real é a própria morte da arte sendo colocada em prática, com finalidades explícitas de fazer rios de dinheiro jorrarem para os bolsos de milionários que muitas vezes sequer possuem algum senso de arte ou inteligência interpretativa.
Quais seriam as tarefas de uma revolução que pretendesse subverter a lógica do capital e erigir a classe trabalhadora como grupo dominante em relação à arte? Em primeiro lugar, devolver a arte ao seu devido lugar, retirando-a do seio do mercado burguês. Em segundo lugar, concebê-la como arma da crítica de nossa sociedade. Segundo o grande filósofo marxista húngaro, Gyorg Lukács (1885 – 1971):
“(…) toda arte, todo efeito artístico, contém uma evocação do núcleo vital humano (…) – e ao mesmo tempo, inseparavelmente dela, uma crítica da vida (da sociedade, da relação que ela produz com a natureza).”