
A pandemia de coronavírus, garantem muitos comentadores, deixará o mundo completamente diferente. De um lado, os otimistas dizem que a demonstração de que o capitalismo não funciona para lidar com os grandes problemas da humanidade leva-nos a uma nova etapa da história. Visão que pode ser filiada à tradição teleológica de enxergar em toda crise um progresso rumo a um futuro brilhante. Longe das bibliotecas, quem passa por eventos históricos tem o direito de duvidar desse princípio.
De outro lado, sociólogos pessimistas veem no Armagedon pandêmico a oportunidade para governos de todas as cores ampliarem a vigilância sobre cidadãos do mundo inteiro. Monitoramento de toda a movimentação de cada pessoa que tenha um celular e filmagem ostensiva de todo o espaço público compõem esse cenário distópico, que teria a China como modelo.
Porém Eduardo, 16 anos, cheio de espinhas na cara, ignora todo esse debate de longo alcance travado em blogs e jornais. Com várias abas abertas no navegador, Dudu pesquisa ao mesmo tempo os sintomas do coronga e se é verdade que práticas onanistas levam ao aparecimento de cabelos na face interna das mãos.
De quarentena, entre uma sessão de PS4 e um capítulo de seriado, durante uns três minutos o adolescente imagina seu próprio cenário pós-coronga: um mundo apocalíptico em que ele lidera um grupo de sobreviventes no meio do caos. Como único homem do grupo, Eduardo determina que as demais sete membros devem procriar com ele para começarem a repovoar a Terra.
Meio cheio ou meio vazio, o copo pode estar infectado com coronavírus, e portanto é melhor não dividi-lo com ninguém. Enquanto Eduardo fantasia com o colapso total da sociedade e com como auferir vantagens dessa situação, Jorge, banqueiro que passa a quarentena em um iate, imagina exatamente a mesma coisa. Como auferir vantagens de um holocausto de idosos e de pobres em geral no mundo inteiro?
Entre mulheres e taças de vinho, vazias, cheias e meio cheias, Jorge começa pelo óbvio: funerárias vão ter muito dinheiro a ganhar. Companhias aéreas aparecerão quebradas precisando de crédito para retomar as atividades quando a normalidade voltar. A Previdência terá um alívio. O desemprego alto acalmará os funcionários de todos os setores, que aceitarão ganhar menos. Os ossos dos mortos, aos milhares, podem servir para fazer botão de camisa, e os cabelos podem virar tecido.
O guru de Jorge, cercado de seguidores fanáticos em uma ilha paradisíaca, faz lives anunciando o fim dos tempos. O mundo vai acabar depois do coronavírus, e os que sobrarem poderão refundá-lo sob as ordens… do guru! O êxtase apocalíptico alimenta a paixão de seus servos, na esperança de um mundo em que todos pensem da mesma forma e tenham os mesmos hábitos.
Longe de tudo isso, José, ajudante de pedreiro que ficou sem renda, tenta catar latinhas. Mas já não há latinhas, porque não há ninguém nas ruas consumindo coisa nenhuma. Tenta pedir esmolas, mas já não há esmolas, porque não há ninguém nas ruas. José revira os lixos das casas para comer os restos de comida. As lixeiras andam meio vazias e não oferecem muito. Ao fim da tarde, deita-se em um gramado e observa o poente, imaginando se sobreviverá à crise provocada pela pandemia. Existe vida após o coronavírus?
