Uma vermelha primavera atravessada na garganta

“Num desses bares em que essa gente drogada e perdida se encontra inclusive pra trabalhar Juan está olhando pras próprias mãos com um cigarro aceso no canto dos lábios”

Imagem: Alkaparras's
por Lucaz Zarov

Depois de uma dúzia de horas no calor das máquinas, nos porões da fábrica, depois dos pares de horas nos ônibus e vagões, o poeta para no bar a caminho de casa, pede uma cerveja, acende um cigarro e fica por um tempo olhando as próprias mãos. Seu nome é Juan e era poeta bem antes de se tornar operário. Saiu fugido do Chile, passou pela Argentina e foi parar em Diadema onde tá há mais de 30 anos.

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O conheci no curso de letras e ele me apresentou pra um bando de escritores com quem trabalhei no conselho editorial da revista Laboratório de Poéticas – Antenas & Raízes. Eu tava começando minha caminhada lítero-musical e tava acabando um período de gestão pública cultural minimamente decente na cidade- a gestão petista.

Diadema, que, apesar (ou por causa mesmo) de toda contradição e do apelido certeiro, Cidade Problema, tem suas belezas. Por exemplo, a quantidade e a qualidade e a diversidade da produção artística local; um centro cultural por bairro, com biblioteca, estrutura, salas de música e pintura, até sala de cinema em um deles, no Eldorado.

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E na primeira década do presente século tinha muita coisa acontecendo. Oficinas literárias da Beth Brait Alvin, a Mostra Anual de Arte com prêmios remunerados, grupos de teatro, saraus, lançamentos de antologias, o saudoso festival Diadema Rock, a Casa do Hip Hop sempre lotada, a Jazz Sinfônica referência nacional, a Cia de Dança roubando a cena mundial, produção audiovisual intensa, Reni Adriano recebendo o Prêmio Guimarães Rosa de Literatura…

Claro, continuou acontecendo muita coisa, graças à teimosia dos artistas locais que passaram a se organizar em coletivos e continuaram inventando e descobrindo maneiras de trabalhar mesmo que a prefeitura estivesse ausente, a secretaria de cultura não dialogasse, fazendo acontecer no muque como sempre fizeram as crews NSU (NAP: Nação Asfalto Podre. Skate Underground) e a Afrobreak, dentro e fora do Centro Cultural Beija Flor. De lá pra cá surgiu o Coletivo Cabrocha, o Bloco da Moça, o 217, o D Studio, o Studio 1100 e a Batalha da Central, pra citar alguns.

Num desses bares em que essa gente drogada e perdida se encontra inclusive pra trabalhar Juan está olhando pras próprias mãos com um cigarro aceso no canto dos lábios. O copo de cerveja já vazio ao lado da garrafa na mesa de alumínio na calçada.

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Zé, o dono do bar, aumenta o volume da música e sai de trás do balcão, pega uma long e se aproxima.

– E aí, Juanito?

Juan esfrega os dedos nas palmas das mãos antes de pegar o cigarro com a mão esquerda e abrir o sorriso.
– Fala, hermano!
– Tá pensativo…
– Sí… Estoy a pensar em Chile, na América Latina…

Zé sorri também, toma um golão de cerveja e se aproxima um pouco mais. Juan continua:

– Qué passa com Brasil? Nosotros, em Chile, Argentina, Uruguai, por muito menos teríamos queimado tudo. Pero, aqui o cara elogia um torturador em plena câmara dos deputados e é eleito presidente pouco tempo depois.
– Lembra da última copa?
– ?
– Brasil ganhou do Chile por 3×0.
– ?!
– Então, lembra o que você respondeu pro Paulinho quando ele tentou te zuar com isso?
– Ah, Sí! Yo dijo “Parabéns. Vocês são pentacampeão do mundo. Chile tem três Nobel de Literatura”.
– Hahaha, pois é.
– Sí… Talvez isso explique alguma coisa. Foi uma boa resposta pro pendejo, pero ele só no sabe que o Brasil merece ao menos uma meia dúzia de Nobel de Literatura.

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A risada dos dois esfria um pouco, mas a cerveja não esquenta. Juan enche outra vez o copo.

– Mano, estoy cansado,
Ele fala com o corpo inteiro.
– Pero há em mim uma fogueira que só Deus pode apagar.
Os olhos reluzem.
– E Ele não quer.
– Amém!

Juan se levanta, ergue com a mão esquerda o copo e ergue bem a voz, bailando ao som dos batuques de seu próprio sotaque portunhol:

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– Porque sou feito de cobre
e terra
e nasci com uma vermelha primavera atravessada na garganta
me acompanha o antigo rito
do índio universal
e em meu caminho invertido caminham todos os seres.

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