Um anjo | por Mell Renault

#FlautaVertebrada: “É deveras certo que este anjo nasça pedra, lança, arco íris, nasce pela dignidade das dores ou pela finitude da vida.”

Imagem: Svetlana Shamshurina
por Mell Renault

É certo
que em manhãs de azul
e pássaro
nasce
um anjo
repleto de cinzas
das chuvas e linhos de ontem
quando
paraíso era mais
terra
água
fogo
e ventania.
É certo
que nasce
assim discreto
distraído
com cheiro de mato
corpo de barro
alma expandida
é certo
que nasce esse anjo
sem asa
sem voo
sem abismo.
É deveras certo
que este anjo nasça
pedra, lança, arco íris
nasce pela dignidade
das dores ou
pela finitude da vida.
Nasce
contrariando a roda girante
morre e nasce
assim
sem pedir
/mas/
com aviso certo
nas manhãs onde
nuvens se esbarram.
É certo
que nasça
anjo bendito
é certo
que bendiga
nosso destino
é certo
ainda que duvidem
você, eu
todos nós malditos,
há de nascer
o anjo
palha, algodão
vinho
para que sejamos
nós
lembrados
numa outra manhã
de qualquer tempestade
ou sol
há de vir
esse anjo partido
meio humano, meio bicho.
É certo
que nasce
porque parece-me certo também
que nós
por muito pouco
já não estejamos mortos
– roda
girante –
vida morte vida
numa manhã de azul
e pássaro
onde o canto
é anunciação e
apocalipse.

 

Mell Renault é escritora e dramaturga, mineira de Belo Horizonte, tem 35 anos, 4 filhos e é casada com o fotógrafo e escritor Carlos Figueiredo, que organiza e cuida de todo seu acervo artístico.

Deixe uma resposta