“O primeiro instrumento que manejou foi a enxada, mas logo descobriu que ao bater nas pedras a folha da ferramenta vibrava e produzia um som”

por Salatiel Neres
Tarde quente em Fortaleza. Na avenida Silas Munguba, pertinho do Castelão, trânsito intenso.
Os carros vêm e vão freneticamente. Motoristas estressados. Buzinas estridentes, fumaça dos ônibus.
De vez em quando ouve-se: “sai do mêi, féla da gaita.” E a resposta já vem na sequência: aí dentro!”
De vez em quando um retrovisor voa pelos ares e um motoqueiro vai ao chão.
Nessa louca agitação de uma grande cidade, os entregadores que ainda estão sobre as duas rodas, correm e se espremem nos corredores entre os veículos, para fazer a entrega e partir para a próxima. O aluguel e a prestação da moto não esperam por ninguém. Pedalar sete quilômetros para ganhar quatro reais, não é mole. Isso sem falar quando acontece de algum maluco pilotar na ciclovia, e atropelar outro trabalhador. Deveria haver mais empatia entre quem está na luta, seja de moto ou de bike. A correria é parte integrante do sistema. Parece que estamos no limite. A cidade, as crianças, as escolas, os operários, os patrões, as velhinhas, até os pombos da praça, todos estão no extremo.
No canteiro central da avenida, em meio aos colchonetes dos desabrigados, uma cena totalmente nova. Uma coisa sem precedentes, cria do século XXI. Crianças de bicicleta, com caixas de papelão presas às costas como se fossem bags, brincando de entregador de aplicativo. Um deles, mais ‘criativo’ chegou a desenhar a logo da empresa na caixa/bolsa, para ficar mais realista. Essa é a imagem da reprodução do capitalismo. O sonho dos monopólios é a distopia da classe trabalhadora.
“Cuidado cara!” Grita um dos futuros trabalhadores precarizados.
Barulho de pneus cantando no asfalto. Uma buzina ensurdecedora se destaca daquele ronco grave das centenas de motores. Um urro de dor.
“Tá cego, seu animal? Ele tá fugindo, volta aqui.” Diz alguém entre as pessoas em volta do rapaz, que acabou de ser colhido pela moto da entrega. O piloto levantou rápido. E num piscar de olhos, costurando em meio ao engarrafamento, desaparece na próxima esquina.
Na porta do prédio toca o interfone: “Entrega para o 602, bloco B, Marcondes.”
“Só um minuto, vou verificar.” Diz o porteiro, olhando torto para o rapaz que está todo sujo e com o blusão rasgado.
“Ainda bem que não estraguei a bag.”
Estava agradecido a Deus por não ter danificado seu instrumento de trabalho. Custou cento e cinquenta reais. A mãe deixou de comprar o remédio, e emprestou ao garoto para que ele pudesse trabalhar.
“Demorou muito esse lanche.”
“Desculpe, senhor, é que tive um pequeno problema no trajeto.”
“Aqui está. Troco para cinquenta, certo?”
“Olha só, rapaz. Meu lanche tá todo revirado, derramando para fora da embalagem. Não vou pagar isso.”
“Moço, não faz isso. Me acidentei no caminho pra cá. Mas tive cuidado com sua entrega.”
“Se com cuidado é assim, imagine se fosse o contrário!”
“Olha, o aplicativo me paga quatro reais por essa entrega, o lanche custa trinta e seis. Vão descontar de mim.”
“Tudo bem, cara. Vou ficar com essa porcaria assim mesmo. Mas vou te avaliar mal, viu?”
“Amigo, vão me bloquear. Tenho a prestação da moto no final do mês.”
“Isso não é problema meu.”
Miguel ainda sentia o impacto na perna e o calor do motor do carro, que parou a dez centímetros da sua cabeça. O asfalto era duro e fétido.
Estava atordoado. Alguém lhe oferecia a mão para ajudá-lo a levantar-se.
“Tá bem, garoto?” Pergunta um senhor grisalho, que segurava Miguel com uma mão e na outra trazia uma sacola de pão.
“Estou meio dolorido. Tá doendo a perna e as costas. O Senhor tem um cigarro?”
“Não fumo. E, sinceramente, você deveria ter mais cuidado com sua vida. Quer que eu chame o SAMU?”
“Tudo isso por causa de um maldito cigarro. Vício desgraçado,” pensava Miguel, sentado na calçada do petshop, olhando para aquela mistura de sangue e areia que cobria sua perna.
“Tenho que fazer um BO. Onde fica a delegacia mais próxima?” Perguntou a um vendedor de picolé.
“Fica um pouco longe. Vai conseguir andar até lá machucado assim?”
“Droga de cidade dos diabos! Tudo é longe.”
O barulho dos motores, buzinas e o estrépito dos canos de escape das motocicletas continuava. Dois minutos depois de a vítima de atropelamento levantar-se do chão, tudo continuou exatamente como estava antes.
As pessoas se dispersaram. Seguiram na sua correria cotidiana pela sobrevivência.
Miguel era um músico nato. Nascido numa família de agricultores. O primeiro instrumento que manejou foi a enxada, mas logo descobriu que ao bater nas pedras a folha da ferramenta vibrava e produzia um som. Quando ia buscar água no açude, tocava os tonéis pendurados nas laterais da cangalha, como se fossem instrumentos de percussão. Um vinha sempre mais vazio que o outro, para dar uma sonoridade diferente. Fazia flautas de bambu e apitos para chamar passarinho. Aprendeu que com uma quenga de côco, madeira e alguns pregos, teria um agogô.
Tanto talento musical não passou desapercebido aos olhos de sua mãe, que não sabia ler as letras do alfabeto, mas lia muito bem as pessoas. Tratou de matricular o filho na escola de música do padre, pois era de graça, criada especialmente para os filhos da gente pobre da comunidade. O jovem até que frequentava as aulas, mas logo aborreceu-se da teoria, do rigor da música clássica, da mediocridade dos professores, que precisavam ler na partitura para poder tocar a música. Ele não precisava daquilo. Possuía o que chamam de ouvido perfeito. Além de tocar qualquer instrumento que chegasse às suas mãos, fabricava outros, fazendo combinações. Ele buscava a sonoridade perfeita. Era capaz de identificar e reproduzir qualquer som que ouvisse.
Seu talento e ambição já não cabiam mais no distrito do Belmonte. Mas nunca foi muito longe. Ficou ali pela região do Cariri, tocando, vivendo, ensinando e inspirando outros com suas notas e trejeitos musicais. Dois dias antes de ser atropelado na capital, estava muito tranquilo curtindo as nascentes no pé de serra, desfrutando da companhia dos amigos, caminhando pelas matas, longe desse mundo capitalista e corrupto. Mas recebeu um telefonema, um convite para ir à cidade grande, apresentar-se junto a outros músicos. Estava sem dinheiro. A pensão do filho atrasada, corria o risco de ver o sol nascer quadrado.
E lá estava ele em um estúdio improvisado, na casa de um desses parceiros. Ensaiavam para a apresentação de logo mais à noite. O cachê não era lá essas coisas, mas a viagem havia sido bancada pelo contratante da banda, e ele voltaria com o dinheiro no bolso para se ver livre da ex-mulher e longe das grades. Aí bateu aquela vontade louca de fumar. Ninguém naquela sala tinha um cigarro. “Esse pessoal tão jovem e tão careta”, pensava a respeitos dos outros. “Meu irmão, onde é que eu compro um cigarro?” “Lá no posto de gasolina do outro lado da avenida.”
“Já volto. Vou lá comprar um março.”
“Não demora, Miguel, temos que correr aqui. O som ainda não está no ponto.”
“Cospe aí no chão. Volto antes do cuspe secar.”
Foi por causa dessa pressa, e de ser um matuto do interior, desacostumado com o trânsito caótico, que ele foi atingido por aquele empreendedor. “Tenho que prestar queixa. Isso não pode ficar assim.” Avistou uma viatura da PM.
“Seu guarda, com licença.”
“Pois não, cidadão. O que foi que aconteceu, foi assaltado?”
“Não. Fui atropelado.”
“Precisa ter cuidado. Olhar por onde anda.”
“É, eu sei. E estou precisando também ir à delegacia, fazer um boletim de ocorrência.”
“A mais próxima é o décimo sexto, lá na Alberto Craveiro.”
“Sou do Crato. Não conheço nada aqui. Trabalho como músico. Estamos ensaiando para uma apresentação hoje à noite lá no Dragão do Mar. Tô liso. Não tenho como pegar um táxi.”
“E tá achando que a gente é Uber, camarada?”
“Não. É que eu pensei que de repente…”
“Sargento, o cidadão aqui quer ir ao décimo sexto fazer um BO.”
“Hoje é seu dia de sorte, rapaz. Acabei de receber aqui uma ligação do delegado. Estamos indo pra lá. Entra aí na viatura.”
“Obrigado, policial. Nunca andei em uma viatura.”
“Espero mesmo que não. Puxa a ficha dele aí no Ciops, Teixeira.”
“Que é isso, policial?”
“Brincadeira! Hoje estou de bom humor. Acabamos de abordar uns meliantes ali na Maraponga.”
“E o que eles fizeram?”
Perguntou curioso do banco de trás.
“Bom, eles não tinham nada no momento. Mas sabe como é, pirangueiro sempre é culpado.”
“Mas se estavam limpos, o que vocês fizeram?”
“Só uns conselhos de braço. Né, Teixeira?”
“Com muito carinho, sargento.”
Caíram na gargalhada os agentes da lei e da ordem.
Miguel não sabia o que era pirangueiro, tampouco conselho de braço. Mas imaginou que os desgraçados deveriam estar bem machucados. O músico nunca se envolveu em nada de errado, ou pelo menos nunca foi apanhado fazendo.
Ao chegar ao DP foi até a sala do escrivão fazer o boletim.
“Nome completo.”
“Miguel Soares Quixaba.”
“Ocupação?”
“Músico.”
“Endereço.”
“Sítio Belmonte sem número, Crato-CE.”
E assim foi fornecendo seus dados para o preenchimento do documento.
“Qual sua queixa?”
“Hoje por volta das treze horas, eu estava cruzando aquela avenida lá no Passaré, acho que é Dedé Brasil o nome.”
“Agora é Dr. Silas Munguba.” Disse o escrevente.
“Pois é. Então fui atropelado por um motoqueiro, que fugiu sem me prestar socorro.”
“Qual a placa do veículo?”
“Não sei.”
“O senhor viu o modelo da motocicleta?”
“Não. Foi tudo muito rápido.”
“Tem alguma testemunha?”
“Várias. O pessoal todo que estava no posto de gasolina e na calçada viu.”
“Alguém veio com o senhor dar depoimento?”
“Não. Todos estranhos. Como te disse, sou do interior.”
“Olha, amigo, assim fica difícil. Você tem que me dar alguma informação, para que eu possa fazer meu trabalho direito. Você viu pelo menos a cor da moto?”
“Não. Só vi o preto do asfalto.”
“Assim não dá, parceiro.”
“Doutor, por gentileza.”
O policial sem saber o que fazer chamou o delegado para orientá-lo com o complicado caso.
“O que houve, Sobreira?”
“Este senhor quer prestar uma queixa de atropelamento, mas não sabe nada sobre quem ou o que o atropelou.”
O delegado parecia um político. Vestia um terno azul e uma camisa rosa sem gravata. Sapato de bico fino bem engraçado. Falava com educação, mas tinha um olhar que dava medo. Cheirava a cigarro e Miguel ainda estava com aquela tremenda vontade de fumar. Pensou em pedir um cigarro, mas teve receio.
O homem tinha uma presença intimidadora.
“Boa tarde. Senhor Miguel, certo?”
Disse o oficial após olhar seu RG sobre a mesa.
“Boa tarde, doutor delegado.”
“Veja, quero muito ajudá-lo, mas como vê, estamos muito ocupados. Temos muitos problemas aqui com os criminosos, sabe? Você precisa me dar algum detalhe relevante para fazermos esse BO.”
“Doutor, é que foi tudo num piscar de olhos. Uma hora estou cruzando a rua, na outra acordo de cara no chão.”
“Dessa forma não chegaremos a lugar nenhum. Você não se lembra de nada? Algum coisa, um cheiro, um som…”
“Opa, seu delegado, aí eu me lembro sim. Som é minha praia.”
“E de qual som estamos falando?”
“Da buzina.”
“Como assim?”
“A buzina era em si menor sustenido.”
O hábil policial tomava nota de tudo para finalizar o trabalho. Faltava apenas meia hora para o fim do seu plantão, e ele não aguentava mais aquela conversa sem pé nem cabeça. Mas de repente um problema!
“Doutor, o formulário aqui do sistema só permite mais três caracteres, não vai caber essa frase aí.”
“Não tem problema”, disse Miguel.
“Coloca assim: bê maiúsculo, eme minúsculo e jogo da velha.”
“Assim: “Bm#”?”
“Isso mesmo.”
“E o que é isso, rapaz?” Perguntou o delegado, passando a mão no rosto num ato de impaciência.”
“Papo de músico, doutor.”
Parabéns, muito bom! Queria saber o fim dessa história!
[…] Si menor sustenido […]