Sem tempo de terminar a escrita | por Fernanda Noal

#FlautaVertebrada: a brutal indiferença cúmplice diante da interminável fila de mortos, vítimas sem luto da pandemia

Imagem: reprodução
por Fernanda Noal

Os corpos aos milhares
Não sentem o desespero
De seus familiares
Não escutam seus gritos
Não enxergam seus rostos dilacerados
Mas aos arredores
Há os que brindam e gargalham
Desdenhando dos corpos amontoados
Como se sempre tivessem sido apenas coisas inanimadas
Pisam nas lágrimas
Condenam outras vidas
Festejam aglomerados
Em seus quintais
Em suas garagens
Em seus egos
Suas existências não interrompidas
Suas ignorâncias enraizadas
Seu desprezo pela vida
Como se fossem imunes
Como se a bolha social em que vivem alienados
Os protegesse de tudo
Enquanto isso nos cemitérios
Empilhados como tijolos
Jazem os corpos
Os rostos
As histórias que se encerram
Sem tempo de terminar a escrita de suas vidas
Uns em vírgula, outros em reticências
Com um ponto final forçado encerrando suas narrativas
Abrupta e dolorosamente
Aos que ficam
Aos que não aguentam mais ouvir
E ver tanto absurdo
Tanto descaso
Tanto desprezo
E enquanto alguns tentam inutilmente
Cessar seus soluços
Há os que não escutam a dor que se alastra
Quase palpável
Quase insuportável
Como se o vento também lamentasse
Cada perda, cada indiferença
E o fato de ter atrás dos muros
Gente demais impune
Condenando a humanidade
À escória de suas existências.

 

Fernanda Noal é gaúcha e mora atualmente no interior paulista, em São Carlos. É artesã de linhas metafóricas e literais. Participou pelo Projeto Passo Fundo das Coletâneas de Contos de 2013 e 2017, e das Coletâneas de Poemas de 2013, 2015 e 2017.

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