Reminiscências | por Felipe Mendonça

#FlautaVertebrada: da Avenida Getúlio Vargas ao aeroporto do Galeão, memórias se cruzam entre versos para dar sentido à ausência

Imagem: Dmitriy Trubin
por Felipe Mendonça

Ainda me lembro.
Saíamos, logo cedo,
Para o centro da cidade.
Caminhavas rápido,
Desviando de carros, gentes e buzinas,
Enquanto, atrás,
Eu tentava te acompanhar.
A multidão quase me devorava,
Mas, antes de me perder,
Sempre paravas
Para me chamar e me dar a mão:
“- Vem e anda sempre ao meu lado
Se não te perdes!”
E eu tentava sempre te acompanhar,
Seguir teu passo rápido,
Aprender todos aqueles caminhos
Que tu sabias de cor.
Adentravas e saías
Por tantas ruas e saídas,
Por tantos prédios e escadas,
Por tantas portas e entradas
Que eu, por algum tempo,
Ficava tonto sem saber onde estava.
Ias e vinhas por tantas alamedas,
Ao som tão vário da cidade,
Ao céu tão claro
Da Antônio Carlos
E da Avenida Rio Branco,
Que eu, já, perdido
Desde a Sete de Setembro
A Ouvidor,
Tentava não me afastar de ti,
Atravessar, ao teu lado, os semáforos
Da Presidente Vargas,
Não deixar que a Miguel Couto
Me engolisse apertada
Com tanta gente e pregoeiros.
E, ainda assim, seguia-te
Por tardes e manhãs,
Por vielas e verões,
Por febres e versões
De uma cidade sem memória,
Por largas avenidas
E esquinas apinhadas
De vendedores, mendigos
E pivetes,
Sempre com a trágica sensação
De que, a qualquer momento,
Tua imagem se esfumaria,
De que me perderia,
De que aquelas ruas todas,
Becos, esquinas e lojas,
Num êxodo sem fim,
Me devorariam.
Mas, eu seguia
Atrás do teu paletó acinzentado,
De teus sapatos pretos,
De tua cabeça alva
Em meio a tantos outros transeuntes,
Tu, meu pai, Moisés,
Que, enfim, me ensinaste
A percorrer tantas ruas e avenidas,
A reconhecer os caminhos,
Por onde tantas vezes
Me perdia ao teu lado,
Tenro, pequeno,
Buscando as horas e os caminhos
No teu pulso forte,
No relógio de ouro
Que fora de outro pai,
De quem herdaste
Tanta errância e cidades,
Tantas ruas e orfandades
Percorridas na palma de tua mão,
Um medo
Que jamais vislumbrei
Na tua face pétrea,
Na tua mão retesa
Segurando-me a mão, o braço,
A memória
Para que não se levantassem contra ti,
E, ainda assim, te profanei,
Mas não deixaste transparecer
Qualquer simonia
Na tua face rija,
E, só ou ao meu lado,
Continuas a caminhar
Aos pés dos monumentos
E de sonorosas catedrais,
Tu que não tens mais o passo rápido,
Mas persistes em tua marcha,
Agora com o rosto
Recoberto de muitas rugas e cãs,
Pai, meu pai
De minha infância e descaminhos,
Confuso em tantos remoinhos
Que me agitam o coração
E as represas da memória,
Ainda lembro bem
Do medo que sentia
De me perder,
De te perder
No Galeão,
Enquanto os aviões decolavam,
Partiam
Para cidades desconhecidas,
Para plagas
Que jamais imagináramos,
Que, para sempre, nos perderiam
Nas asas do Concorde.
Eu erguia o braço orgulhoso,
Mostrando o gesso
Com tanta coisa escrita
Que se apagou,
E tu parecias sorrir,
Enquanto os aviões decolavam…
Ainda lembro bem
Quando atravessávamos a baía,
Na Urca ou na Piratininga,
Tinha a nítida sensação de estar seguro,
Fora da cidade,
Vendo-a alargar-se
Para todos os lados
Como um gigante deitado
Entre penhas e montanhas,
Via-lhe bem os dedos dos pés
Apontando em arranha-céus,
Sua cabeça enorme,
Maracanã
Contra o maciço da Tijuca,
Seus braços onde, serenos,
Pousavam inocentes aviões
E a cabeleira,
Ao vento desfraldada,
Por onde deslizavam embarcações
Rumo à Praça XV.
O redentor era minúsculo
E, como toda a cidade,
Parecia caber em nossas mãos.
A Ponte, imensa,
Parecia esticar-se entre continentes
E passar por baixo dela
Era pura diversão.
Fascinado, contemplava
A enorme estrutura
Com medo de que desabasse sobre mim,
Enquanto os maiores cargueiros
Cruzavam-lhe o vão central
Placidamente.
Olhava, então, para ti,
Buscando algum consolo,
Mas tinhas sempre
Os olhos duros,
O cenho altivo,
Os lábios sérios,
Compenetrados na árdua tarefa
De trabalhar e alimentar-me,
E a cidade, à frente,
Prestes a nos devorar,
Não trazia espanto algum
Ao teu rosto inabalável.
Em desafio, a encaravas,
Como ela a ti.
Quando cruzava a Presidente Vargas,
Num ônibus qualquer da linha 324,
E via o relógio da Central
Antes de desembocar
Na Avenida Brasil,
Sabia que era hora de voltar
Em silêncio,
Sem qualquer palavra,
Para casa, e me levavas,
Brasil afora,
Até a Ilha do Governador.
Ainda assim,
Me deixaste!
Por quê?
Por que me abandonaste
Se sabias
Que eu não era Deus,
Se sabias
Que eu não era tu,
Pai?
Teus caminhos,
Hoje, ainda os percorro,
E, os medos infantis,
Calei fundo no meu peito,
Os mesmos que meu filho sentirá
Quando juntos percorrermos
Aquelas ruas de outrora
Na cidade de agora…

 

Felipe Mendonça é poeta de ofício. Nasceu em 1976 em Porto Alegre/RS. Formou-se pela UFRJ em Letras e fez mestrado e doutorado em Literatura Brasileira na mesma universidade. Logo cedo, mudou-se para o Rio de Janeiro e viveu boa parte da sua vida na Ilha do Governador. Hoje, mora em Belford Roxo, município da Baixada Fluminense da cidade do Rio de Janeiro.

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