“Se não fosse toda aquela dor, o anônimo poderia ter rido. Em um bendito estádio? Era certo que muita gente ia a um estádio, mas logo um preso político?”

por Matheus Dato
Tudo o que aquele anônimo desejava era compreender o que estava escrito naquela frase monumental pintada no alto da entrada. Não somente a luz que ali penetrava lhe cegava os olhos, mas um véu tormentoso de sangue insistia em cegar-lhe e aumentar ainda mais a sua confusão. Se lhe perguntassem onde estava, seguramente poderia responder que estava em qualquer lugar do mundo, menos em casa. O peso do cassetete maciço ainda doía em sua nuca, e o mundo ao seu redor parecia cair, rodar e desmanchar-se no ar; se pudesse estimar, deveria estar girando a muitos quilômetros por hora.
Distinguiu, em um relance, um grande número oito afixado em uma placa. Não fazia a menor ideia do que aquilo poderia significar. Subitamente, em um rompante, este anônimo passou a temer por sua vida, como um animal jovem que ainda desconhece os perigos de seu mundo, mas pressente o risco à sua carne quando surge o predador. Era um sentimento visceral, de gritar, proteger-se de algo ou alguém que não podia ver.
Por alguma razão, foi capaz de notar que estava sendo carregado, e que dois pares de enormes botas pretas ladeavam seu corpo arrastado. Conseguiu virar a cabeça e verificou que dois sujeitos de capacete o arrastavam para o desconhecido, sem saber o que se sucederia. A bem da verdade, este era um sentimento bastante conhecido por aquelas bandas.
Ao ser jogado em um galpão vasto, rodeado de armários de ferro, o rapaz deu-se conta de que havia sido preso. Estava no Chile há pelo menos dois anos, ou duas décadas, não sabia, e fora apanhado em um protesto de praça. Recordou-se das clarinadas e dos gritos, do cheiro fumegante das ruas e de uma sonora pancada que explicava razoavelmente toda aquela confusão e aquele sangue. Havia pelo menos uma dúzia de pessoas naquele estranho depósito, todas completamente desconhecidas. A um canto, um sujeito parecia menos ferido que os seus demais companheiros de sofrimento; estava muito sujo, era fato, mas ostentava um gasto bigode e roupas simples. Não mostrava nenhum sinal de dor ou violência.
Acercando, arriscou a solidariedade que brota nas crises de vida ou morte:
— Com licença, meu amigo, poderia informar que horas são?
— Aqui não há horas, companheiro. Nem sei quanto tempo faz que estou aqui.- disse, meio ressabiado, aquele desconhecido.
Desanimado, o jovem anônimo perguntou novamente:
— Sabe onde estamos, ao menos?
Soou a surpreendente resposta por debaixo daquele lustroso bigode:
— Ora, você está no Estádio Nacional. Santiago, Chile.
Se não fosse toda aquela dor, o anônimo poderia ter rido. Em um bendito estádio? Era certo que muita gente ia a um estádio, mas logo um preso político, carregado por dois gorilas sem sequer se aguentar em pé?
— Tem certeza?
— Tenho, óbvio. Estamos em um vestiário, logo próximo à entrada.
— Qual seria seu nome, por gentileza?
— Me chamo Anastácio Peña, e o senhor?
Meio envergonhado, o anônimo respondeu:
— Bem, não sei, estou ainda muito combalido da surra. Mas é algo como Gabriel ou Gael, posso lhe assegurar. Perdoe o absurdo desta resposta.
Curiosamente, aquilo não pareceu nem um pouco absurdo a Anastácio. Um tanto contente de ter um diálogo, perguntou àquele anônimo rapaz se ele era, por acaso, militante – não, não era. Perguntou se já havia sido preso antes — não, nunca. Quando perguntou por que, então, o desconhecido estava ali, todo moído e encarcerado, o rapaz respondeu:
— Eu me encontrava em um protesto de rua quando os carabineiros nos atacaram, e eu caí.
— Pois eu também! Fui preso na Praça Itália.
O anônimo sorriu:
— Coincidência, lá me pegaram. A coisa acabou ficando feia.
Anastácio se abriu a contar sua vida, alegre por ter um confidente em meio às caras assustadas dos demais detentos. Disse-lhe quase tudo: nascera em Montevidéu, mas, sendo filho de mãe chilena, morava naquele país desde que se entende por gente. Trabalhava como periodista em uma coluna de esportes, por isso conhecia bem o ambiente e sabia exatamente onde estavam. Militava há quatro anos no Partido Comunista, clandestinamente (“Não se pode mais confiar em quase ninguém, meu senhor.”).
O anônimo preso tentou compensar com as poucas informações de que se recordava. Sabia que morava em Santiago, cidade em que também nascera, e que trabalhava como motorista; de quê, não lembrava com exatidão. Conhecia aquele estádio, mas nunca havia estado ali dentro. Até onde podia recordar, sua primeira atividade política havia sido naqueles protestos que, fatalmente, acarretaram em sua prisão.
Anastácio contou-lhe histórias de suas coberturas esportivas, e disse que já não fazia ideia se havia sido demitido como desaparecido ou se ainda possuía emprego. Perguntado, também disse ao rapaz que não sabia a que frase pintada na parede este se referia, mas que o número oito devia ser o número da entrada.
E conversaram ainda muito mais, compartilhando sonhos de um Chile livre e de um dia em que, saindo dali, veriam a bola rolar no relvado daquele estádio. Como a vida não é feita de momentos fraternos o tempo inteiro, logo apareceu um guarda para levar de volta o rapaz anônimo.
O militar olhou com estranheza para o desconhecido quando o flagrou na conversa e ordenou que o jovem o acompanhasse. No final das contas, o soldado confirmara: seu nome era Gael, e seria conduzido “a outro pátio”, sem dar mais respostas. Aí terminaria esta história, com Gael ainda gritando uma saudação enquanto era novamente arrastado.
Porém, como no futebol, algumas histórias possuem sua prorrogação. Gael vira ali muito sofrimento e sentira-se muito mal, como nunca antes havia se sentido.
Contrastado pelo peso de tamanho horror, o preso político por vezes se zanga com sua própria vida. Deseja ser punido pela morte, deseja sumir, não ser visto, mas acima de tudo, deseja ver o futuro. Saber o que se passa para além dos muros da prisão.
De ambos, o velho militante e o jovem sem lembranças, nunca mais se ouviu falar. Talvez sejam mais sangue a assinar a nova constituinte popular de seu país. Morreram sem ver o futuro — decidiram por fazê-lo acontecer.
Não sabemos se Gael Torres conseguiu, alguma vez, descobrir qual era a frase pintada naquele triste e monumental estádio, a frase que seus olhos enevoados de sangue e lágrimas não decifraram. Muitos outros passaram por aquela escotilha, mas a frase continua meio descascada na tinta ocre, anunciando mais quinze minutos de luta aos povos do mundo:
UN PUEBLO SIN MEMORIA ES UN PUEBLO SIN FUTURO, ali, meio esquecida na entrada oito do Estádio Nacional de Chile.