“Rapaz, parece que vão acabar com Paulo Freire mesmo.” Meu interesse por aquela dupla aumenta. O mais velho se limita a sorrir amigavelmente e perguntar ao outro onde este queria chegar

uma crônica de Matheus de Carvalho Borges Dato
Por cima do ombro, na mesa do bar, consigo repuxar certos diálogos que a memória guarda. Entraram dois sujeitos, de boas vestes, com camisas de primeiro botão aberto e calças sóbrias. Traziam uma expressão comum de classe média e um ar cansado, a típica estafa de homens de escritório das grandes cidades, coroados com um salário aceitável e pouquíssima alegria. Como eu disse: figuras comuns da classe média.
Um encosta ao balcão, com o barulho de um molho de chaves pendendo do cinto, e logo solicita prestimoso um bom e velho traçado e duas cervejas. Enquanto o vermute se mistura ao conhaque, e enquanto admiro a escolha, tem início o diálogo.
Pelo que compreendi, ambos são bancários. Minha investigação nunca falha.
Um, de mangas dobradas e cabeça grisalha, parece aqueles antigos personagens de sindicatos dos anos oitenta, embora conserve a vitalidade que a experiência proporciona.
O outro, mais moço, batendo na casa dos trinta, aparenta menos cansaço e traz aquele ânimo pueril no olhar, aquela expressão de poucos-e-muitos problemas. Um sujeito comum, preto e branco como um tabuleiro liso.
O mais jovem pontua: — Rapaz, parece que vão acabar com Paulo Freire mesmo. Meu interesse por aquela dupla aumenta. O mais velho se limita a sorrir amigavelmente e perguntar ao outro, com os ombros, onde este queria chegar.
— É sério, Cardoso. O presidente já disse que essa palhaçada vai acabar. Paulo Freire já deu o que tinha que dar, ouvi dizer que tem até projeto de lei pra isso agora. Outro dia vi o ministro…
Me desvio brevemente do diálogo, pelo misto de familiaridade e tédio que me trazem essas coisas. Acendo um cigarro, e após duas tragadas apuro de novo os ouvidos. O mais velho parecia querer fazer uma pergunta, daquelas cuja resposta já é conhecida.
— E tu leu Paulo Freire, Fernando? Desde quando tu entende disso? Tu não é economista?
O rapaz não se descompôs.
— Não li não. Não leio essas coisas.
— Então, como tu sabe que o cara é ruim e ultrapassado?
Silêncio. Um gole no traçado.
— Ouvi falar, Cardoso, mas era gente entendida que disse.
— E tu leu o que essa gente escreveu?
Mais um gole. Certa tensão.
— Também não, mas é que tem tanta informação por aí.
É a vez do mais velho fazer pausa e bater isqueiro, acendendo o seu cigarro.
— Tem nada. Tem muito problema e propaganda, isso sim. Fica tudo na camarilha, por debaixo dos panos, e aí querem culpar o velho que nem foi lido e nem está mais aqui pra se defender.
Fernando mostra certa melancolia, o que me surpreende. Seca o traçado e pede mais uma cerveja. O jovem rapaz possui um olhar inteligente.
— Cardoso, são coisas que eu vi na Universidade. Eu estive lá, e os professores comunistas não pareciam muito sabidos, e todos adoravam Paulo Freire. Fora a bagunça que era aquele lugar.
Ah, as memórias de faculdade… O mais velho emenda:
— E tinha os anticomunistas? Liberais, conservadores, coisa que o valha?
— Até tinha. — respondeu meio desajeitado o rapaz.
— E eles eram melhores que os comunistas?
— Pior que não.
— Acho que a culpa dessa droga não é do Paulo Freire, irmão. — palavras à guisa de explicação. No entanto, Cardoso parece se animar de súbito, lembrando-se de algo:
— E você, Fernando? Um cara bom, de boa família, caridoso, inteligente. Lia o quê dos anticomunistas? Aliás, tu escreveu alguma coisa nessa época?
O amigo parece se atrapalhar e pede mais uma dose.
— Não muito, eu ouvia mais falar.
Me perco dos dois, entre cômico e triste, e a conversa dos amigos parece descambar pra outra coisa mais amena. Fui embora, lançando um olhar curioso àqueles dois, colegas tão iguais e tão distintos.
Deles, eu nunca mais ouvi falar.