O poeta é um bicho estranho, é um troço, um treco esquisito, um sem lugar. Poeta bom é poeta morto. A poesia tem que acabar.

por Andri Carvão
O poeta pobre era o preferido de Hitler.
O poeta miserável, o poeta faminto.
O poeta devia morrer dormindo.
Mas o poeta se suicida.
O poeta se embriaga e se mata,
bebe até cair na sarjeta,
bebe até morrer.
O poeta é a ponte.
O poeta usa a corda como gravata.
O poeta dá um tiro no peito.
O poeta dá um tiro na boca.
O poeta dá um tiro na ideia.
O poeta é um passarinho de chafariz,
presa fácil para os gaviões.
O poeta que consegue viver da escrita
escreve prosa.
O poeta boêmio. O poeta solteiro.
De preferência sem filhos.
O poeta sem eira nem beira.
O poeta que só dá conta de si e das coisas do espírito.
O poeta pé sujo dorme na rua.
O poeta depende da caridade dos amigos
e dos conhecidos. O poeta na pior
grato por saber que podia ser pior.
O poeta lido por outros poetas,
poetas amigos e detratores.
O poeta é um bicho estranho,
é um troço, um treco esquisito,
um sem lugar.
Poeta bom é poeta morto.
A poesia tem que acabar.
Performance
Na turma da aula de meditação havia tantos alunos
quanto o público de um sarau de poesia.
A aula inaugural aconteceu ao ar livre
à sombra de um baobá milenar.
A orientadora Zen ensinou técnicas de respiração,
alongamento e relaxamento.
Depois se sentou no chão em contato com a terra batida.
Cada movimento seu era repetido por seus alunos,
todos descalços e com roupas confortáveis.
Ao término da bateria de exercícios,
Zen se sentou na posição de lótus
e a partir desse momento deixou de falar
com seu séquito de seguidores.
O silêncio Om interior. Concentração
na respiração…
Esvaziamento
total de pensamento…
Bastou 15 minutos para que o primeiro aluno desistisse e,
como num efeito dominó, mais dois se retirassem.
Após 50 minutos, os sobreviventes, cerca de meia dúzia de alunos,
foram despertados pela voz doce de Zen entoando uma cantiga ancestral.
Como a aula não era de graça e tempo é dinheiro
Zen orientou seus alunos a se levantarem lentamente,
fizeram um alongamento final e despediram-se.
Zen tinha compromisso com uma nova turma em outra região,
numa quadra de esportes na área urbana da cidade.
Os alunos se despediram da professora,
entraram em seus carros e se foram.
Só então Zen notou que
Marina
permanecia na posição de lótus,
em transe.
Zen chamou uma duas três vezes e
Marina
Marina
Marina
nada,
não deu a menor atenção.
“Então tchauzinho, querida.”
Três dias depois
houve uma nova reunião com a mesma turma ou outra turma [que importa?]
aos pés do baobá milenar e,
para a surpresa de Zen, lá estava ela,
Marina
em posição de lótus. A aprendiz matou a mestra.
Um quadro de extrema beleza, de uma beleza irretocável.
Amedrontada, Zen se aproximou de
Marina
e tentou tocá-la, mas a nova mestra desmoronou
como um monte de areia
comida pelas formigas.
Coisas da minha cabeça
Assistimos a um filme em família: o coreano Trem para Busan.
As crianças choraram horrores, baldes de lágrimas de emoção e de nervoso.
Apagamos as luzes e deitamos para dormir.
As meninas só dormem com a luz do corredor acesa.
No quarto conversamos na penumbra.
“Qual o pintor, amigo de Van Gogh [olha a dica hein] que começou a pintar depois dos 30 anos e abandonou a família para viver no Taiti?”
“Ah, eu sei!, mas esqueci o nome. Fala a primeira letra.”
“G”
“Guilherme…”
“Não.”
“George…”
“Não. Gauguin.”
“Aaahh!”
“Qual o pintor que tinha um bigode engraçado e pintava objetos derretendo?”
“Ah, essa é moleza: Salvador Dalí.”
“Qual a pintora –”, começa a mamãe.
“TARSILA DO AMARAL!!!”, as crianças gritam juntas.
“Eu nem terminei de falar. Hahaha. Mas era ela mesmo. Hehehe.”
“Então qual é a pintora que pegava crânios de animais no deserto para pintar e também pintava flores?”
“Assistimos um filme sobre ela, né?!”, diz a mamãe.
Eu: “Sim.”
Ela: “Fala a primeira letra.”
“G.”
As crianças mudas.
“Fala o primeiro nome.”
“Georgia.”
“Georgia O’Keeffe.”
“Sim.”
Digo à caçula: “você precisa dormir, senão vai ficar acordada sozinha.”
Em questão de minutos está ressonando.
Mas sua irmã resiste puxando assunto.
“Papai, eu não queria que o herói morresse.”
“Eles fazem isso o tempo todo, filha. Fazem você gostar do personagem e depois matam.”
“Mas seria melhor se ele conseguisse escapar e cuidasse da família.”
“Mas daí não seria tão emocionante. Dorme, querida.”
Em alguns minutos todas dormem. Viro e reviro na cama procurando a melhor posição, mas o sono não vem.
Os galos cantam e os cães respondem.
Na mesinha de cabeceira a camiseta verde dobrada se parece com um sapo prestes a pular na minha cama.
Pisco os olhos e tenho a impressão de ter visto a sombra de um homem na porta do quarto.
Lá fora o canto de um grilo ou de uma cigarra. Parece aqui dentro.
Morro de medo dos mortos.
Vivo com medo dos vivos.
“Se um ladrão… com qual objeto… posso avançar sobre ele?”, penso.
Medo de morrer cedo e deixar as coisas pela metade.
Medo de morrer tarde e ser um peso.
A torneira pingando.
O estalo de um móvel.
O menor som captado pela audição humana é um estopim para especulações.
Alguém caminha no sótão.
Alguém mora no sótão e talvez tenha insônia também.
O sótão é o cérebro da casa.
Alguém mora na minha cabeça.
Ainda bem. Boa noite.
Andri Carvão nasceu em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, em 1978. Cursou artes plásticas na Escola de Arte Fego Camargo em Taubaté, na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e na EPA – Escola Panamericana de Arte [SP]. Graduando em Letras pela Universidade de São Paulo, há colaborações do autor nas publicações: Labirinto Literário, Libertinagem, Gueto, Aluvião, Originais Reprovados, Subversa, Ruído Manifesto, Literatura e Fechadura, O RelevO, Bibliofilia, Escrita Droide, Germina, Mallarmargens; foi colunista do site Educa2 e participou das antologias: Gengibre – Diálogos para o Coração das Putas e dos Homens Mortos, Embaçadíssima – Antologia Tirada de uma Notícia de Jornal [ambas pela Editora Appaloosa], 7 Dias Cortando as Pontas dos Dedos [nº 1: um manifesto contra o fascismo e nº 3: edição do caos], organizadas por Rojefferson de Moraes; do livro homenagem a Rubens Jardim [editora Patuá] e da Antologia Ruínas [editora Patuá]. Publicou Polifemo em Lilipute e outros contos [Editora Appaloosa, 2016], O Poeta e a Cidade [Edição Gueto #9, 2017], Puizya Pop & Outros Bagaços no Abismo, organizou o livro coletivo Marielle’s [ambos pela Scenarium, 2017], Um Sol Para Cada Montanha [Chiado Books, 2018] e Poemas do Golpe [editora Patuá, 2019]. Integra o Coletivo de Literatura Glauco Mattoso, criado pelo profº de Linguística da USP Antonio Vicente Seraphim Pietroforte.