O frio tem lado, afeta mais os mais pobres, é mais caro, e nem todo o mundo tem meios para se aquecer enquanto essa frente fria em São Paulo está apenas começando

por João Pereira
Você gosta de frio ou calor? Na maioria das declarações que vejo, o gosto por um está no outro: o frescor de um ar condicionado ou uma cerveja gelada no calor e o aconchego do edredom e dos grossos casacos no frio. Mas seu gosto não me importa, não é sobre isso que vim falar. Independentemente de gosto pessoal, o que importa é que o frio é perverso.
Percebi isso na primeira vez que, conscientemente, ouvi falar em morte de moradores de rua por frio. As notícias são escassas, mas acontece com frequência nos invernos mais rigorosos em São Paulo. É mais comum em países frios, porém acontece e mostra uma realidade horrível também por aqui. As vítimas são trabalhadores que por anos de desemprego e o mais completo desamparo acabam morando na rua e não têm qualquer outra opção.
Apesar disso, há quem pense que a rua é bom lugar para se morar. “Mas olha, falando dos projetos sociais, algo muito importante é assim: as pessoas que estão na rua, não é correto você chegar lá na rua e dar marmita e dar porque a pessoa tem que se conscientizar que ela tem que sair da rua. Porque a rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua”, lembra Bia Doria, esposa do governador de São Paulo, João Doria, expressando a visão que os coxinhas, sem alma, têm desta parcela da população. Quem já viu a situação dos albergues públicos sabe que não é bem assim. Se você nunca viu, sugiro visitar o Instagram do Padre Júlio Lancellotti, que está repleto de imagens destes campos de concentração “voluntários” e do resultado de ficar neles para os moradores de rua.
Para começar, é cumprir rigoroso horário para entrar e sair, que geralmente não é condizente com a vida que eles levam, pois têm que entrar muito cedo, sendo que boa parte das pessoas que atuam em favor desta população, vai ao encontro deles à noite. Dentro do albergue, têm que lidar com banheiros sujos e quebrados, brigas internas, colchões com percevejos e toda sorte de parasitas e doenças. Claro, este problema não é só no frio, mas no frio a coisa piora, pois a necessidade de um teto, mesmo que provisório, é muito maior.
Entretanto não é só para a população de rua que o frio é perverso. O frio tem lado, é pior para a classe trabalhadora que para a burguesia, ou mesmo a pequena-burguesia. Pode parecer exagero e pouco científico falar que um fenômeno da natureza tem um lado na sociedade, mas não é. O frio é mais caro que o calor. A diferença de um carro com ar ou sem ar, pode chegar a R$ 5 mil. Um ventilador custa muito menos e consome menos que um aquecedor. Um lençol pode custar menos de dez reais, enquanto uma coberta não sai por menos de R$ 30. O chuveiro no inverno pode dobra a conta de luz.
Estamos passando por uma pandemia que está gerando uma crise econômica mundial. No Brasil a situação é ainda pior, diante deste governo incompetente e genocida, de forma que mesmo pelos dados oficiais, cheios de maquiagem, já se reconhece que mais da metade da população economicamente ativa está desempregada e tem dificuldade de trabalhar mesmo no meio informal. Isso significa que a maior parte do país não tem dinheiro para gastar com o conforto para lidar com a onda de frio que está apenas começando.
Mais frio, menos dinheiro. As famílias que tiveram o pagamento da conta de luz suspensa por três meses no começo da pandemia, agora enfrentam problemas com contas mais altas e pouca margem para lidar com o aumento de gasto. O gás está acima de R$ 70. Isso tudo somado a uma outra triste estatística: é no frio que se registra o maior número de queimaduras. Sem dinheiro, muitas pessoas optam por fazer uma fogueirinha, ou coisa do tipo, para se esquentar. E é claro que quem vai se queimar não é quem tem dinheiro para ter uma lareira em casa. O pior é quando se opta pelo fogo para se aquecer e a pessoa mora em casa de madeirite, aí aumenta também o risco de incêndio.
Para mim, tem ainda mais uma face maligna do frio, a qual me afeta diretamente. Depressivo, trato-me há anos e o frio é um fator de grande impacto no meu humor. É comum se falar da preguiça que se dá no frio, mas é muito pior que isso. Estou falando da completa falta de disposição para manter a mínima rotina saudável, desde acordar e levantar, até ir trabalhar, fazer exercício físico ou qualquer outra coisa que me ajude a lidar com a doença. Foi em uma onda de frio como esta que fui afastado do trabalho por dois meses, entrando no INSS. E lidar com isso também não é fácil, não é bem visto se o problema acontece quando você trabalha na produção, como foi meu caso. O operário que se afasta, por si, já é visto como preguiçoso e possível fraudador do INSS. É claro, se você é de uma função administrativa ou dono, o problema é visto de outra forma.
O próprio tratamento é bem mais complicado se você não tem dinheiro. Hoje consigo bancar um tratamento de R$ 400 por mês, somando médico e medicamento. Coisa que não conseguiria na época do afastamento. Bons psiquiatras não atendem de graça, a maioria nem mesmo por planos de saúde. O valor pode variar de R$ 200 a milhares de reais por consulta. Já o atendimento por convênio ou SUS é padronizado e rápido, não vão testar muitas medicações e nem se importar com os efeitos colaterais. No SUS, a gama de medicamentos antidepressivos é pequena, desatualizada e muitas vezes faltam no estoque os poucos medicamentos listados. Tudo isso dificulta o tratamento do trabalhador depressivo, que pode, como eu, ter crises causadas pelo frio. E no isolamento social da pandemia, em que os casos de depressão dispararam, a situação só piora.
Você gosta de frio ou calor? Seu gosto não me importa, não estou aqui para julgar gosto. Eu gosto de tempo ameno, nem quente, nem frio, pois já sofri também com o calor de meio dia no verão debaixo de uma máquina em operação e sei que não é gostoso. Foda-se seu gosto, mas o frio é cruel.