O diário de Zé Ricardo: sexta-feira

“Como se a última peça de um quebra-cabeça tivesse caído sobre mim, descobri que o dia de ontem não era a tragédia. A tragédia era a minha vida”

Imagem: maradon 333
por João Teixeira

Esta é a última parte da série. Para ler os outros dias, clique aqui.

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Sexta-feira, 27/03.

Acordei ainda era madrugada; 4h45. Mal consegui pregar o olho naquela cadeira de hospital. A mamãe não fez nenhum ruído durante a noite. Aproximei o ouvido do nariz dela, para ver se ouvia sua respiração. Sim, ainda respirava. Pobre mamãe, viveu cercada de homens desprezíveis. Meu pai, que perdeu tudo e eu que não conquistei nada. Quando saísse do hospital eu daria a notícia a ela. Eu sabia que ela diria que está tudo bem, que daríamos um jeito, mas no fundo da alma estaria remoída pela mesma decepção que ela carregava desde sempre. Beijei a testa da mamãe e fui fumar um cigarro.

Tomei o elevador para o último andar. De porta em porta, através da escada de incêndio, alcancei o terraço do edifício. De cigarro em cigarro, apossou-se de mim uma sensação nefasta. Uma coisa que vinha da alma, mas chegava na carne, esmagava o peito. Uma compressão extrema no peito. De repente, como se a última peça de um quebra-cabeça tivesse caído sobre mim, descobri que o dia de ontem não era a tragédia. A tragédia era a minha vida. Sempre fui infeliz. Desde que consigo me lembrar.

Brigas de família, pontapés, xingamentos, louças quebradas, surras do pai, surras da mãe, surras na escola, desprezado pelas mulheres. Quem queria estar com um Zé Ricardo? Esse moleque é muito burro, meu pai dizia. No final da adolescência passei a vender doces que minha mãe fazia e vi que levava jeito para a coisa. Sim, é verdade que até consegui um bom sustento como vendedor de seguros. Mas sabe aquela ambição que vejo em outras pessoas? De onde vem aquilo? Nunca consegui entender. Para mim não tinha sentido terminar os estudos. Não valia a pena. No fundo eu sentia por mim o mesmo desprezo que todos sentiam. Uma semente que brotou e cresceu como erva-daninha na minha alma. Que futuro pode ter um Zé Ricardo? “Acorda pra vida, Zé”. “Porra, Zé, deixa de ser energúmeno”. No fundo eu sei que eu nasci para ser só um Zé Ricardo, quarenta e sete anos, morando com a mãe, tomando cachaça com outros Zés no bar.

Acho que a Lídia foi só uma página fora do script. Um sonho de felicidade do qual eu tive que acordar. Se eu pudesse voltar e abraçar a Lídia pela última vez. Agradecer por ela ter sido o lampejo que me mostrou como uma vida de verdade deve ser. Disso eu não posso reclamar. Pelo menos Deus me deu a oportunidade de conhecer uma vida de verdade. Só lamento não ter aproveitado mais. Se eu soubesse, teria me mudado com a Lídia para o interior. Viveríamos sob a paisagem estática do interior. Sem grandes desassossegos. Sem o ritmo maldoso da cidade grande. Tocaríamos nosso rebanho durante o dia e ao chegar do luar trocaríamos as mais genuínas carícias, sem se atrelar demais um ao outro. Aprenderíamos a aceitar o movimento natural das coisas. Sem o movimento da cidade que nos põe sempre em busca de algo que nunca vai chegar. Eu saberia aceitar. O adeus nunca seria tão doloroso, porque ele nunca foi nada mais do que parte da paisagem, parte da criação dos Deuses, bela e sagrada.

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Depois da Lídia, a vida de um Zé Ricardo seguiria tranquila, como o o rio que segue seu curso tranquilo montanha abaixo, sem precisar entender porque segue. Daí um Zé Ricardo saberia que não se deve temer estar sozinho no mundo, porque ainda tem o rio, a montanha e o rebanho. Quantos andares do alto desse edifício? Sete? Oito? Suficiente para pôr fim a essa medíocre vida? Olho lá embaixo. Aquele chão seria a minha última passagem por este mundo. O último capítulo da minha história sem graça. Será que alguém lerá este diário? Talvez essa seja a oportunidade para ser lembrado por alguma coisa. Espatifado no chão, na frente do hospital no qual a mãe estava internada. “Vagabundo! Abandonou a mãe à própria sorte!”, dirão as velhas desocupadas que leem a Folha de Santo Amaro. Não acho que a notícia sairia em um jornal mais importante. Quantos andares? Quantos segundos de queda livre? Lá vem surgindo o sol no horizonte. Achei que a manhã traria um suspiro de esperança para mim. Esse amanhecer, mais noite que a noite, só me fez lembrar que eu não suporto mais um dia. Nem mais um dia nessa carcaça de Zé Ricardo. Só precisava me despedir da mamãe.

Fui lá dar um beijo na velha. Não queria que ela vivesse com a decepção de ter criado filho suicida. Não, esse desgosto não. Ainda preciso fazer uma coisa importante. Provar que não sou um fracassado completo. Saí de lá eu fui para casa, pensar em um plano. Horas se passaram. Pronto, já sei. Eu ia acabar com a festa do Márcio hoje. Ele tirou meu emprego, agora eu ia estragar a noite dele com a Gisele. Fui lá para a Eloy. Fiquei do outro lado da rua observando a saída dos funcionários. Se o Márcio saísse com a Gisele, eu agiria. Saiu gente pra caramba. A Simone do RH, o Teixeira, a Dona Socorro, da copa. Nada dos dois. Será que tinham ido embora mais cedo? Às vezes a Gisele nem veio. Pronto, lá vinham os dois.

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Como eu temia, cheios de risadinhas. O Márcio parou um táxi e abriu a porta para ela entrar. Ela estava linda, com um vestido indecente, cabelo feito e cheia de maquiagem. Vagabunda. Será que ela se arrumaria assim se fosse sair comigo? Afinal, eles iam jantar? Ou será que iriam direto pra um motel? Tive certeza que o desejo do Márcio se realizaria hoje. Ela se entregaria para ele como uma rosa delicada pronta para ser quebrada ao meio. Entraram no táxi. Hora do show. Parei um táxi também. Indiquei o destino para o motorista. Desci do carro determinado a mostrar para o Márcio e para a Gisele que um Zé Ricardo se respeita. Safados.

A essa hora já deveriam estar trocando olhares maliciosos, sentados um do lado do outro, se roçando. Que façam o que querem fazer, isso eu não posso impedir, mas eu vou cortar o barato dele. Estava em frente à casa do Márcio. Primeiro andei até o final da rua, observando a movimentação dos pedestres. Quando a rua ficou tranquila, pulei o portão e me aproximei da casa. Dei uma ou duas voltas em torno da casa e não vi sinal de alguém lá dentro. Forcei a janela e entrei. A casa dele era bem como eu imaginava, televisão moderna, eletrodomésticos de primeira linha. Era para isso que ele pisava nos outros, humilhava a equipe dizendo que precisávamos nos esforçar mais, para poder comprar do bom e do melhor. Mas eu ia acabar com a graça do Márcio.

Trouxe na mochila uma garrafa com gasolina. Fiz um rastro de gasolina e deixei o resto na garrafa, bem no meio da sala. Acendi um cigarro do lado e saí correndo. Quando o cigarro atingisse a gasolina, BOOM! Eu acabaria com a graça do Márcio. Agora o Márcio ia aprender quem um Zé Ricardo se respeita. Saí dali correndo, ouvi a explosão quando já estava dentro do ônibus. E agora, Márcio? Pode aproveitar sua noite com a Gisele, fica com essa vadia para você. Queria estar lá na hora que você chegar. Na verdade queria acompanhar tudo. O jantar. Ver você fodendo a Gisele. Ver você gozando nela, se achando o maioral. E depois ver você chegando em casa, e fazendo a mesma cara azeda que fazia para mim na Eloy, aquela cara de filho da puta que você sempre fez para mim.

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Fui para casa, tomar banho para tirar o cheiro de gasolina. Fazia tempo que eu não sorria. Dei o troco no Márcio. Fazia tempo que eu não me sentia tão bem. Peguei o rádio e levei para o banheiro para ouvir um Rock’n Roll enquanto tomava banho. Antes que eu pudesse mudar de estação, na CBN se dava a notícia:

“Estamos aqui na região próxima ao parque do Ibirapuera, onde houve um incêndio em uma residência agora há pouco. O fogo já foi controlado pelos bombeiros. O capitão responsável pela operação acaba de confirmar para a nossa equipe que uma mulher de 33 anos dormia com o seu filho de 6 anos em um dos quartos no momento da explosão. Não conseguiram escapar, infelizmente chegou a notícia de que encontraram os corpos já carbonizados. Há fortes indícios de que se trata de um incêndio criminoso”.

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Fiquei paralisado por alguns minutos. Sem reação. A que ponto pode chegar um Zé Ricardo? Um corretor obsoleto de quarenta e sete anos, desempregado. Não, eu não sabia que os dois estavam lá. Para falar a verdade, nem me lembrei que ele tinha mulher e filho. Eu só tinha o Márcio na cabeça. Queria me vingar do Márcio. A água escorria no meu corpo enquanto ia tomando consciência do que fiz. Esperei chegar o remorso. Esperei, esperei, esperei… Nada. O que veio sim foi um ataque de riso. Pelo menos a mulher não iria descobrir as traições do marido. E aquele moleque retardado não iria crescer para se tornar outro acéfalo que pisa nas pessoas, outro Márcio. Terminei meu banho, passei a roupa, espremi os cravos do nariz, cortei as unhas e lixei os calos do pé, penteei o cabelo. Agora estou fumando cigarros, sentado na poltrona esperando a polícia bater na porta. Dizem por aí que quando o filho vai preso o governo paga um cheque mensal para a mãe. Acho que vai dar para a velha se virar. Boa noite e adeus, querido diário.

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