O diário de Zé Ricardo: quarta-feira

“‘Quebro ela no meio’. Isso lá é coisa que se diga? O que ele quer dizer com isso? Será que mulheres gostam de serem quebradas no meio? Será que a Gisele vai dar para ele?”

Imagem: leolintang

por João Teixeira

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Quarta-Feira, 25/03

Acordei hoje pensando nela. Será que ela tiraria cópias na máquina hoje? Talvez sim, talvez não. Tudo bem se hoje não fosse. Mais cedo ou mais tarde ela teria que copiar algum contrato, alguma proposta, documento, qualquer coisa. Hora ou outra ela apareceria lá. Pelo sim, pelo não, decidi dar uma passada na roupa hoje. Sou terrível nisso. Minha mãe ficou lá do meu lado me zombando, perguntando que milagre tinha acontecido para eu decidir passar roupa. Normalmente ela que passa no domingo, e eu vou usando até sexta-feira. Dá pra segurar, mas qualquer um que pare para ver minha camisa vai notar um ou outro amassado. Nesse caso, se a Gisele me notasse hoje, estaria com a camisa impecável, sem nenhum amassadinho.

Não é assim não Ricardo, dá isso aqui, vai lá passar o seu café vai. As mães não aguentam ver a gente fazendo essas coisas todo desajeitado, vão logo tomando da nossa mão. Uma roupa mal passada é uma tortura para elas. Ou talvez seja só para jogar na nossa cara que a gente não sabe fazer mesmo. De qualquer forma, ficou bem melhor do que se eu tivesse feito. Tomei banho, cortei as unhas e lixei os calos dos pés, espremi os cravos do nariz. Meu nariz é meio inchado de tanto cravo. A Lídia adorava apertar eles, era o passatempo preferido dela.

Passei loção, revirei a gaveta atrás das meias menos estrupiadas que tivesse. Peguei a gravata mais bonita, normalmente deixo ela guardada lá no armário, só uso quando tem algum casamento de um familiar, ou uma reunião com um cliente muito importante. Se bem que depois que o Márcio entrou, fez questão de tirar os clientes importantes da minha mão. Falei para a velha que hoje ia ter uma reunião no meu setor, para ela parar de me encher.

Não gosto de falar sobre esses assuntos de mulher com ela. Ela sempre vem me dizer que mulher gosta disso, gosta daquilo, que eu tô fazendo errado, que eu nunca vou me relacionar de novo se não mudar meu jeito. Mas de que jeito eu teria que ser? Igual meu pai? O velho vivia enfiado na loja de ferragens. Tá certo que ele começou o negócio na raça e teve que ralar muito para conseguir que a loja desse certo. Mas ele nunca estava em casa, mal conversava com ela. A única coisa que sabia fazer era reclamar da mistura que tinha no jantar. Comia, depois largava o prato ali em cima da mesa mesmo. Acendia o charuto dele e soprava a fumaça na nossa cara. O duro era ter que terminar de comer com aquele cheiro ridículo de charuto na cozinha. Às vezes ela reclamava, mas ele logo mandava ela calar a boca, dizia que tinha ralado o dia inteiro na loja para comprar a comida que a gente tava comendo, e que ele tava com vontade de fumar o charuto dele, porque na loja os clientes reclamam do cheiro e ele não podia fumar lá.

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Depois de uns anos ele conseguiu perder a loja, caiu na lábia de um libanês que disse que ia fazer uma sociedade com ele para abrir em um lugar maior, lá no Brooklin. O libanês era o maior 171. Fez o velho vender a loja e dar o dinheiro na compra do novo imóvel. Mostrou escritura e tudo. Tudo falso, o imóvel nem existia. Essa gente aí desses lados sabe negociar, esse cara vai deixar a gente rico, ele dizia, a sorte sorriu para a gente! Velho burro. O libanês sumiu do mapa. Perdeu a loja. Depois disso caiu na cachaça. Não se conformava que tinha ralado tanto para montar aquele negócio e perdeu por burrice, entregou na mão de um pilantra. Só vivia enfiado no bar.

Eu já estava no colegial, era rapaz, minha mãe mandava eu ir buscar ele para jantar. Vai se fuder, moleque do caralho! Vou a hora que eu quiser! Fala pra velha dar a comida pro cachorro! Foda-se! Às vezes eu ignorava, e voltava. Mas às vezes me enfezava e xingava ele de volta. Maior baderna no bar, ele partia pra cima de mim e a gente ficava rolando no chão da rua, dando maior vexame. Esse era meu pai, exemplo de homem para a minha mãe, que defende ele até hoje, diz que foi vítima das circunstâncias, que foi um bom homem que garantiu nosso sustento, sem ele não seríamos nada. Tá bom mãe, tá bom, eu dizia. Não adiantava falar nada. Por isso hoje não entro mais nesse assunto com ela. Penteei o cabelo, passei meu perfume e fui para a empresa.

Trabalhei a manhã toda com um olho na papelada e outro na fotocopiadora. Cadê ela, hein? Será que já tinha copiado todos os contratos ontem? Ela tirou muitas cópias ontem, com certeza não ficou nada para hoje. Bom, depois do almoço talvez aparecesse por lá. Boa, já sei. Vou lá no Vermont no almoço. Normalmente o pessoal da Eloy vai comer lá. É caro e o nosso ticket não cobre, mas a turma aqui gosta de uma soberba. De sentar no meio do pessoal de terno e gravata. “Esse ano a meta é crescer no mínimo 13.5%”. ” Olha, Laccordi, temos que entender que o mercado já não é mais o mesmo, se a gente quiser crescer  temos que nos reinventar”. Esse é o tipo de papo que rola por lá. Mas valeria a pena pagar caro para almoçar, se acaso eu encontrasse a Gisele por lá, pediria licença para me sentar com ela. Puxaria um assunto. Começaria com algo relacionado a trabalho, depois iria sutilmente indo para áreas mais pessoais e ousadas, como “você já foi casada”, “não? não acredito, com certeza já teve muitos pretendentes”.

Na hora de pesar o prato na balança deu até dor no peito. Do que era feita aquela comida? Setenta e sete reais o kilo? Pelo amor de Deus! Olhei no salão e nada da Gisele. Bom, pelo menos eu tinha arriscado. Quem sabe ela chegasse depois. Eu acenaria com o braço e convidaria para sentar comigo. Escolhi uma mesa vazia e sentei sozinho. Mas, para a minha agonia, ao invés da Gisele quem entrou no restaurante foi o puto do Márcio, acompanhado de dois puxa-sacos dele. Pegaram a comida e sentaram na mesa bem do meu lado. Nem me notaram, claro. O Márcio porque tem certa dificuldade de se conectar com o mundo em volta dele. É do tipo de gente que tá falando com você, mas fica desviando o olhar para ver seu próprio reflexo em alguma janela ou espelho. E os dois panacas porque ficam olhando para ele, tentando imitar os movimentos e o jeito de falar.

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Começaram a comer, tudo que o Márcio falava eles concordavam dando risada. Aí quando um dos otários abria a boca para falar alguma coisa, ele perdia o foco da conversa, fazia algum comentário sobre alguma comida no prato dele, ou reclamava de algum serviço do restaurante, depois voltava pra conversa com algum assunto da preferência dele. Show de Horrores. Porra, mas me diz se não tem que aprovar essa legislação aí? Hoje em dia o sujeito acha que é mole, chega a hora que quer, quando dá o horário larga tudo do jeito que está e vai embora, só quer saber de hora extra se for receber em dobro. Ah, dá licença meu! Eu fazia hora extra pra dar com pau, visitava cliente no final de semana, esse povo aí tá precisando de um choque de realidade. E os panacas concordavam: Sim, Marcião, com certeza, meu! Até aí, tudo bem, mas quanto mais o imbecil falava, mais eu ficava perplexo.

Uma vez meu pai atropelou um um negrão de carro, daí ele desceu e pediu desculpas, falou que achou que era um saco de lixo preto! Gargalhadas. Mas e aí, vocês viram a foto do evento beneficente que a Eloy promoveu lá naquele orfanato? Tinha umas ninfetinhas lá já, hein? Já dá pra comer. Já aguentam. Mais gargalhadas. Porra, falando nisso? E a Gisele, hein? Que delícia, né, meu? Nossa, se eu pego, quebro ela no meio. Estou trocando umas ideias com ela, chamei para jantar. Vamos ver… se ela vai ser mais uma que vai cair na cama do chefe. Ela tem cara de putinha. Mais e mais risadas. Perdi a fome, larguei os talheres no prato, fez um barulho. Daí os idiotas me notaram. Pude ver que comentaram alguma coisa de mim entre eles. Deram uma risadinha. Queria poder acabar com a gracinha dos três ali mesmo. Minha vontade era de quebrar uma cadeira nas costas de um deles.

Voltei para cima revoltado. Quebrava ela no meio? Quem ele pensa que é para falar assim da Gisele? Será que eles realmente estão “trocando ideias”, como ele disse?  Mas ele é casado. Pilantra. Será que a Gisele sabe que ele é casado? Se ela vier tirar cópias vou dar um jeito de contar pra ela. Se ela estiver pensando em sair com ele, vai desistir. E aí, Teixeira, a Gisele apareceu por aqui hoje? Não, cara. Mas por que a pergunta, hein? Se estiver interessado, pode ir tirando o cavalinho da chuva. Ela está assim com o Márcio, ó. Tão falando aí até que eles vão sair na sexta-feira. O cara fez até umas reservas naquele restaurante chique lá nos Jardins.

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O povo daqui é muito fofoqueiro. A Dona Socorro, da copa, fica ouvindo tudo e sai espalhando pra todo mundo, vê se pode. Perguntei pro Teixeira se ela não sabia que ele era casado. Com certeza não, e não sou eu que vou contar. Deixa eles, cada um sabe o que faz. Depois disso não falei mais com o Teixeira. Ele ficou sem entender. Perguntou se eu estava grilado. Não, não, só estou com bastante coisa para entregar. Queria mandar ele para o inferno. Sendo conivente com aquela situação? Faça-me o favor, Teixeira. Pensava que o Teixeira era um cara de honra, que ia pelo certo. Ah, vai-te à merda, Teixeira! Fiquei xingando o Teixeira em pensamento até a hora de ir embora. Eu sabia que não era culpa dele. Era culpa da Gisele. Porra, sair com um imbecil daqueles? Esperava mais dela. Na verdade, a culpa era do Márcio. O Márcio era um lobo em pele de cordeiro. Sabia se fazer de bom moço. Tinha modos. Fazia graça. Para falar a verdade até é um cara boa pinta. Também… não tem mais o que fazer. Vive enfiado dentro da academia toda noite. Assim até eu. Com certeza usou da posição de chefe para ganhar a confiança dela, enganou, ludibriou. Sim. Claro que a culpa não era da Gisele.

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Estou pensando nisso desde que saí de lá. Cheguei em casa e até agora não consegui comer, não consegui tomar banho, nada. “Quebro ela no meio”. Isso lá é coisa que se diga? O que ele quer dizer com isso? Será que mulheres gostam de serem quebradas no meio? Será que a Gisele vai dar para ele? Se houvesse alguma coisa que eu pudesse fazer para impedir. Mas o quê? Porra, que eu tenho a ver com isso? Se o cara quer ser infiel, problema dele. Eu só conversei uma vez com a Gisele. Que tenho eu a ver com isso? Não tenho nada a ver. Penso no Márcio quebrando a Gisele no meio. Ela chegando lá na firma com dificuldade para andar, com risadinhas pelos corredores com a Dona Socorro, da copa. Certamente depois o Márcio ia fingir que não aconteceu nada. Ia pedir para ela nunca comentar nada com ninguém. Mas todos saberiam, graças à Dona Socorro. Logo ela descobriria que ele é casado. Ia descobrir que é a putinha do setor. A reputação da Gisele ia ficar quebrada ao meio. Se o Márcio pegar ela, vai quebrar ela no meio. Vou comprar cigarros, fumei um atrás do outro desde que cheguei. Boa noite.

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