Notívaga | por Andri Carvão e Marcella Wolkers

#FlautaVertebrada Poema escrito a quatro mãos nos leva a pensar sobre a vaga-noite, o vaga-lume e a rotina de máscara, tarefas, algo para cozinhar, algo cozinhando por dentro

por Andri Carvão e Marcella Wolkers

Noite vaga
Vaga noite
Não se apaga
Noa boite

Noite vaga
Vaga noite
Nunca acaba
Noa boite

Noite vaga
Vaga noite
Lua maga

Vaga noite
Bela adaga
Noa boite

*

Vaga-bunda
Vaga-lume
Vaga a noite
Que se apaga

Noite feltro
De cigarro
Que se vai
Como um escarro

Noite bala
Rápida noite
Lua mingua e se abala

Cheio dia
Bela jornada
Dom Bia!

*

“Bom dia a sua fuça, seu fi duma figa!
Isso é hora?!”

“Tava no truco, mulé! Arre!”

“Que mané, truco! Que perfume é esse?”

“Cachaça! Hic!”

“Eu nunca vi cachaça doce.”

“Oxe, tava no bar, mulé, que coisa, me deixe!”

“Vou deixar memo, seu fi duma égua! E que marca vermeia é essa no pescoço?”

“Briga de faca, mulé. Tu quase fica viúva.”

“Antes fosse, seu fi de rapariga véia!”

“Mar me ova: tavo no bar do Zé com o Mané, o Tião, o Quinho e o Tonho.”

“Que mané Tonho! Cê vai ver o Tonho, num libero mar é nunca pra você. Vai ficá é na bronha!”

“Ô mulé, o tonho não, mulé. Tudo, menos o tonho…”

“Vá procurar um tonho no bar, vá, cão dos inferno!”

*

“Bom dia o catânu, sua rameira”

“Estaba a jogari ao peixinho homem! Chiça!”

“Qual peixinho, qual o quê?” Que cheirete é este?”

“Ginjinha! Hahahaha”

“Eu nunca vi ginja azeda!”

“Oh pá, ‘stava na tasca, homem! Raios! Deixa-me!”

“Vou deixari mesmo, sua cabra!
E que marca de mãos são estas no teu colo?”

“Maria viu uma melga e deu cá uma chapadela”

“Gandas mãos tem Maria”

“Sim, tu quase ficas sem teus dois meninos.”

“Antes ficasse, sua falceta!”

“Mais oiça! Estaba na tasquinha da Celeste com a Maria, Filipa e Céu.

“Tais a brincare, tais. Tu vais é veri o Céu masé. Já to mostro.
Não libero nunca mais pra ti. Vais ficari na mão.”

“Oh homem. Graças à Deus. Vou voltari pra tasca e ficar nas mãos de quem acertou meu colo, cão dos inferno!”

*

A noite é uma criança.
Nuvens são fraldas.

*

A criança amanheceu
Esqueceu das nuvens e cagou nas calças

*

Balanço na rede ou na cadeira de balanço
com Joyce Carol Oates.
A noite tece.
As crianças enrolam que é uma beleza
pra tomar banho
exibidas com os fones novos de PC gamers
assistindo YouTubers ou jogando Minecraft e Roblox.
A companheira quer continuar a série.
Estouramos pipoca.
Cortamos uns salaminhos ou uns queijinhos
e tentamos zerar aquele vinho.
É de noite, fim de noite.
No último episódio do Conto da Aia
June na floresta
é carregada por suas companheiras de saia
com um ferimento de tiro na perna
e um sorriso de lágrimas
por ter salvo mais de 50 meninas daquele inferno na terra.
Coração na boca.
A ficção imita a realidade.
Um mar de montanhas é a barragem da represa.
O gado pasta na porta de casa.
Um coro de galos roucos e desregulados.
Agora é só escovar as travagens para pegar o berço.
Mas antes
mais um capítulo da Lygia Bojunga para as meninas.
Noa boite.

*

Sempre fui de rotinas
Acho que descarrilhei…

Não durmo
Se durmo, o sono vem à conta gotas
Plic, plic

Alimento-me sem ver
Vejo sem comer
Cozinho o cansaço dos dias em banho-maria

Acordo de não ter dormitado
Trabalho
Abacaxis
Crianças
Desinfecta
Tsss tsss!
Máscara
Filha na escola
Banho nela
Banho de mim
Casa que fica
A gente que vai
Galo cantando
Gato miando
Marido falando
Filha brincando
Flores… Flores… Flores
E eu surtando no meu silêncio
Tudo em mim turbula cá dentro
E por fora sou calmaria

Algo cozinha dentro de mim
Ainda há água para cozer as minhas pedras internas
Um dia água acaba e
Tudo irá queimar até estourar
Explodir
Bomba relógio
Trim trim
3 cafés
3 refeições
3 decepções
3 beijos
3teza
Desinfecta
tststs
Máscara
Insónia
Coração brinca de brilhar e doer
Chamêgo…
Beijo na filha
Rotina desfeita
Eu desfeita
Descarrilhei

Andri Carvão cursou artes plásticas na Escola de Arte Fego Camargo em Taubaté, na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e na EPA – Escola Panamericana de Arte [SP]. Graduando em Letras pela Universidade de São Paulo, o autor tem diversas publicações online e antologias. Um Sol Para Cada Montanha [Chiado Books, 2018] e Poemas do Golpe [editora Patuá, 2019]  são as suas mais recentes publicações.

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