Minha vida seria mais fácil se chumbinho tivesse cheiro e/ou gosto

As reflexões de um cão de rua em um mundo cão, pelas calçadas hostis de uma cidade terrivelmente humana e cruel

Imagem: Shutterstock
por Yan Pool

A criação de búfalos no Brasil se concentra no Pará e no Maranhão, foi o que ouvi da tevê do barzinho enquanto namorava o último frango assado que girava e girava. Não sabia que existia esse bicho no Brasil. Morreria sem saber se dependesse desses grandões que vão e vem. São uns bichos calados, ocupados, apressados, normalmente de cara feia. O último vulto de gentileza garantiu o rango de hoje, mas meu futuro a Francisco de Assis pertence. Vou comendo o que tem por aí, e o que tem por aí são sobras dos últimos seres bons dessa terra. De seus tronos de papelão vivem sentados, cabisbaixos, donos de movimentos impotentes e não era pra ser. Pelo menos não fingem que eu não tou ali; isso mais que basta e é daí que vem a admiração. Os últimos dias foram de chuva, então a hidratação tá garantida nos bebedouros de asfalto ao longo desse mundaréu de meio-fio.

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Passa de tudo por essas bandas: encontro uns coleguinhas aqui, rivaizinhos ali, uns pequenos e uns grandes, uns diferentes, mais animados, mais mimados e de banho tomado, acorrentados a um bicho grandão, parecido com aqueles do vai e vem apressado. O mundo é gigante e dá pra ver de tudo, ainda mais daqui da rua, onde passam todos e tudo, todo dia.

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O problema é que a chapa tem esquentado pro meu lado sei lá por quê. Apesar de ser de boa, já passei muita raiva, mas a última vez que espumei foi por outro motivo: alguém não me quis por perto e nem imagino o motivo, considerando que sou tranquilão — tão tranquilo que sequer virei uma lata na vida; não é minha culpa se me classificam de qualquer jeito. Se chumbinho tivesse cheiro ou gosto, seria mais fácil, enfim. Sorte a minha que decidiram prolongar minha andança perdida de poste em poste, fêmea em fêmea.

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Mas não é da minha quase morte que quero falar. Só tirei um tempinho pra firmar essa prosa porque levaram meus companheiros de calçada. Uns esquisitos vieram falando de embelezar, turismo, abrigo, não entendi muito bem até porque o papo não era comigo. Pouco depois sumiram com quase todo mundo, suas bugigangas e papelões também. O que é beleza pra eles não é beleza pra mim. Não mesmo. Quando querem ferrar minha rapaziada, eles inovam. Já viu despejo de rua? Nem eu. Agora não tenho companhia pra esquecer a fome, e por falar em fome, não tem mais vultos bondosos pra me jogar as sobras que ajudam a esconder as costelas sob a pele.

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Sou eu o próximo? Ah, se fosse. Queria ser mandado pra perto dos bichos grandes, nem que fosse pra andar de banho tomado, encoleirado à mão dele ou dela, nem que pra isso eu tivesse que virar desse tipo “especial”, ter membros curtinhos — pra correr, só jesus –, focinho achatado — esse aí é ruim pra respirar — orelhas arrastando no chão — acho feio — e sem falar que sustentar o próprio peso num corpinho dá uma baita dor de coluna; foi o que ouvi de uns colegas — que assim como eu, não viram lata. Ser do tipo especial não deve ser tão fácil. Pensando bem, me deixa aqui, desse jeito mesmo, penugem caramelo, simetricamente aventureiro, desventurado, sozinho. Ao menos tenho alguma história pra contar aos meus companheiros pra quando eu voltar.

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