#FlautaVertebrada: “Ah, minha alma, / Quando me veio o Diabo / E, por ti, / Ofereceu-me / Reinos, ouro, prata, / Eu apenas lhe disse: / ‘- Tome-a de graça.'”

por Felipe Mendonça
Minha alma
É tão pobrinha
E há tanto tempo definha
Que já lhe preparei funeral.
Espero logo que morra,
Como a andorinha
Ou os bem-te-vis,
Numa revoada
Matinal.
Espero que, logo, morra,
A minha alma,
E leve, consigo,
Todas as minhas mágoas
E me deixe em paz, vivo,
A transparecer, enfim,
Uma súbita calma.
Ah, minha alma,
Vá embora
E leve, contigo,
Esta face que só chora,
Esta boca que só ora
E não entende que a vida
É o instante, o agora.
É uma boca
Que nos devora
Na íris do sol,
Na pétala da rosa
Ou na luz das nebulosas.
Ah, minha alma,
Deixa-me,
Pois não sou como tu,
Etérea e alva,
Pois sou este corpo
Sujo,
Lava que arde
No escuro.
Ah, minha alma,
Vou-me excomungar-te.
Tu vais para o céu
E eu para vala.
Tu és a cabala
E eu pouca coisa,
Quase nada.
Melhor assim;
Não há nada o que me valha
E vivo ao léu
De quem não ajunta,
Só espalha.
Separar-te-ei
Do meu pensamento,
Para semear-te
No vento.
Ah, minha alma,
Quando me veio o Diabo
E, por ti,
Ofereceu-me
Reinos, ouro, prata,
Eu apenas lhe disse:
“- Tome-a de graça.”
Ah, minha alma,
Te desejo
Que sejas feliz,
Que voltes
À lama,
Ao barro
Da onde vim,
Que, de mim,
Te evoles
Qual fumaça
De um cigarro,
Que vires
Uma dócil avezinha,
Branca pombinha
A voar livre, livre,
Para longe de mim,
Para que, enfim,
Eu não me aprisione a ti,
Nem tu, a mim,
E eu me torne
Alguém
Que vive, vive, vive
A romper
Todos os gradis.
Ah, minha alma,
Deixa-me desalmado,
Sem nada, ninguém,
Sem anjo ou juiz
Ao meu lado,
Porque, como tu,
Eu também
Quero ser livre e feliz.
Felipe Mendonça é poeta e ensaísta brasileiro, nascido em 1976, em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, que cresceu no Rio de Janeiro no bairro da Ilha do Governador. Hoje vive em Belford Roxo/RJ. É mestre e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Administra um blog de poemas chamado “Poesia, necessário pão” em que publica poemas de sua autoria, tendo publicado em 2018, pela Chiado Books, um livro de poemas intitulado “Reescritos”. Escreve n’O Partisano quinzenalmente às segundas-feiras.