A Ditadura Militar foi fundamental para que se operasse uma importante mudança dentro das Forças Armadas e no meio político brasileiro como um todo

por Paulo Coelho
Outro dia, conversando com um direitista que se identifica como liberal, “não daqueles radicais”, ele me disse que em uma coisa direita e esquerda concordavam: o ódio ao PMDB, ao Centrão, sem o qual ninguém pode governar e que impede que qualquer um governe plenamente, sempre pressionando pelo toma-lá-dá-cá. Eu, esquerdista que sou, relutei em minha mente, mas concordei. Apenas disse, influenciado pelo Foro de Terezina (Podcast da Piauí), que não se tratava de Centrão, mas do Arenão, uma leve provocação que não colou, pois ele concordou comigo.
Essa conversa ficou na minha cabeça e levou a certas reflexões que compartilho aqui com você. Em primeiro lugar, pensei em como é engraçado que, em geral, o esquerdista acha que tudo que está do outro lado é direita, e o inverso acontece com o direitista. Eu tenho meus motivos para ver o PMDB e todo Arenão como direita. Desde a ditadura, os governos antes de Lula, a pressão que
exerciam nos governos do PT até o impeachment e os governos seguintes. Sempre presentes, sempre direitistas.
Mas é claro que o direitista não vê assim. Para eles, grande parte do que vejo como direita, não passa de uma massa política fisiologista, que, enquanto seus interesses particulares estiverem sendo atendidos, estarão satisfeitos. A verdadeira direita seriam apenas os políticos mais ideológicos da ala, em geral outsiders ou ao menos de pouca expressividade entre os políticos mais tradicionais. Com a
máxima “não tenho político de estimação”, se sentem à vontade para trocar a preferência de político A para B sem qualquer constrangimento, basta que A seja queimado, alvo de denúncias ou simplesmente perca sua relevância eleitoral.
E nos extremos o negócio torna-se caricato. É comum na esquerda, apesar de não ser popular, a tese de que o PT seja de direita. Os bolsonaristas, por sua vez, acreditam que apenas eles são de direita e até o MBL, por ter saído do barco, não seria mais de direita. O PSDB, então, é condenado pelo seu nome como um partido marxista. Há ainda aqueles que não veem mesmo Bolsonaro como de
direita, uma vez que não conseguiu estabelecer todo o programa liberal que prometeu.
Superada a colocação que meu interlocutor fez a respeito de esquerda e direita, questionei qual seria, do ponto de vista liberal dele, a solução para acabar com esse buraco negro da política. A panaceia dele é o Estado mínimo, pois se o Estado se restringe ao mínimo necessário, de educação, saúde e segurança, não sobraria boquinha para os interesseiros. Eu ri e disse que, se diminuir o Estado, só vão sobrar eles lá. Eles são o Estado. Bom, minha panaceia não é menos utópica que a dele. Revolução e aumento do caráter democrático do Estado, ou seja, mais cargos eletivos, mais controle popular.
Mas nada disso é simples e só agora entro no tema principal do título. Esses políticos odiados pela esquerda e pela direita controlam a máquina e não vão aceitar nenhuma mudança profunda, em nenhum sentido que possa acabar com a boquinha deles. E para isso contam com o total apoio dos militares. Ou alguém realmente acredita que os militares seriam contra tudo isso?
Bom, basta dizer que este centro, este Arenão, só existe graças aos militares. Foram eles que instituíram por vinte anos que MDB e ARENA seriam os dois únicos partidos do país. E foram eles também que aceitaram quase pacificamente o fim da ditadura, garantindo total impunidade e mantendo todos nos cargos que já tinham em suas respectivas corporações. E o próximo governo, seja qual for, só existirá, só se manterá, se mantiver o apoio dos militares e do seu partido todo repartido, o Arenão.
E os milicos?
Pode até parecer estranha a pergunta, mas acho válida: e os militares? São de direita ou de esquerda? Dentro da própria direita há quem fale que a Ditadura Militar foi de esquerda, por não ter privatizado tudo e possuir uma presença forte na economia, com investimentos em infraestrutura, por exemplo. E se a Ditadura Militar foi de esquerda, os militares não poderiam ser outra coisa. Mas fico com a resposta que qualquer militar te daria sobre o assunto. Não são só de direita, odeiam a esquerda e veem ameaça de comunismo em tudo. E qual a razão para ser assim? De onde vem esta tendência direitista dos militares? Para quem, como eu, nasceu já dentro deste cenário, tudo isto pode parecer óbvio, mas existe um desenvolvimento histórico que levou a este quadro e que compromete o sistema político atual.
A Ditadura Militar foi fundamental para que se operasse uma importante mudança dentro das Forças Armadas e no meio político brasileiro como um todo, o que se consolidou e aprofundou nas décadas da parcial e frágil democracia que vivemos até hoje. Antes e mesmo em parte do regime iniciado em 1964, havia setores de esquerda dentro das Forças Armadas, setores combativos, importantes e em determinados momentos até mesmo revolucionários. Mas a cúpula militar, certamente influenciada pela forte atuação dos EUA em conjunto com as ditaduras latino-americanas, fez uma limpa em suas bases e fora delas, procurando eliminar qualquer força que representasse uma oposição aos seus interesses, que poderia fugir do estrito controle dela.
Quem estudou história deve se lembrar da famosa Revolta da Chibata, em 1910, um levante de marinheiros negros contra o uso da chibata por seus oficiais brancos. Armados de dois encouraçados e liderados por João Cândido, os amotinados ameaçaram bombardear a capital do país, Rio de Janeiro, se não fosse decretado o fim da escravidão dos militares negros pelos brancos. Na década seguinte, surge o movimento tenentista, importante movimento de militares de baixa patente contra a oligarquia, de onde surgiu a liderança de Luís Carlos Prestes e uma das maiores ações revolucionárias que o país já viu, a Coluna Prestes. Durante a Ditadura, Carlos Lamarca e vários outros militares que se opunham ao que os militares faziam no poder foram expulsos e, em geral, executados, de uma forma ou de outra.
É claro que não foi apenas durante o período de 1964 e 1985 que este processo se deu, mas foi quando ocorreu com maior força e determinação. E os militares não eliminavam apenas quem se opunha a suas ações pela esquerda. Um dos grandes idealizadores civis do golpe militar, o jornalista Carlos Lacerda, após se opor à continuidade do regime a partir de 1966, chegou a ser preso e há suspeitas que sua morte, mais de uma década depois, pode ter sido forjada. Mesmo após o fim da ditadura, continuaram a limpa, como aconteceu com o atual presidente. Jair Bolsonaro, que era contra a redemocratização e insuflava seus colegas contra o processo e até contra seus superiores, com ameaças de atentados, foi expulso do Exército neste movimento de limpeza.
Para os militares, no entanto, não bastava a limpeza, a eliminação de qualquer posicionamento diferente dentro de suas fileiras. Contaram com apoio externo, com o famoso Plano Condor e a Escola das Américas, uma instituição do Departamento de Defesa dos Estados Unidos que definiu como seu objetivo, a partir da década de 1960, a “formação de contra-insurgência anticomunista”. Apenas no período de 1946 a 1984, doutrinaram mais de 60 mil militares de toda a América Latina, com ensinamentos que iam do golpe militar a técnicas de tortura. Esta instituição existe até hoje, agora sob o nome de Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação em Segurança (WHINSEC, da sigla em inglês).
O interesse dos Estados Unidos em doutrinar os militares do seu “quintal”, como se vê, deve ter aumentado muito após a Revolução Cubana, ocorrida em 1959. Abrir espaço no próprio continente para países comunistas não deveria ser interessante para a economia que se consolidava como dominante mundialmente. E, claramente, os militares representam um papel muito importante nisso. Com as Forças Armadas alinhadas contra qualquer proposta de esquerda, não há movimento pacífico e democrático que consiga se impor ao poder de fogo deles. E dificilmente um movimento de esquerda conseguiria ganhar importância contra este alinhamento à direita dentro das instituições armadas.
Hugo Chávez, ao que me parece, é apenas uma exceção que confirma a regra. Já os movimentos guerrilheiros que surgiram e, em grande parte fracassaram, em vários países, mostram como é difícil criar uma organização armada por fora dessas instituições e contra elas.