Idiotices cotidianas da vida urbana

Cenas de uma metrópole intratável: “Desligou o telefone e deu risada, pensando que era o famoso golpe do sequestro. Se sentiu orgulhoso e pomposo por achar que ninguém engana ele”

Imagem: Dario Sanches
por João Teixeira

O estagiário de direito mergulha em processos demasiadamente complicados para a sua meia formação. Lê, lê e lê novamente e não faz ideia do que fazer com aquela papelada toda. O suor escorre pela testa e a iminente necessidade de ter que perguntar ao chefe mais uma vez o que fazer o levam a níveis patológicos de ansiedade. Mas não há o que fazer. São seis horas e estágio é estágio, nem um minuto de serão permitido. Enfia os papéis na gaveta e se agarra na ideia de que amanhã saberá o que fazer. Desce o elevador, arranca a gravata que o sufoca e sai em marcha para rua. O escritório fica na República e ele caminha em direção a Santa Cecília para encontrar seu Dealer. Combinaram as seis e meia para pegar dez gramas de erva, para ele e um amigo da faculdade. Encontra com seu fornecedor e a transação acontece normalmente com discrição, ou na “bola de meia” como costumam dizer. O corpo e a mente estressados pelo trabalho cansativo clamam por cinco ou seis tragadas da erva. Ele caminha até a praça mais próxima. Pega sua cuia e tesourinha de unha, dichava a erva. Coloca a erva dichavada na seda marrom. Enrola uma piteira e encaixa na seda junto da erva. Aperta bem o conteúdo para não “pastelar o beck”. Enrola uma vez. Lambe a parte superior da seda. Enrola mais uma vez e sela o cigarro com a parte molhada. Para pilar a erva na ponta que irá acender, usa o cadarço do sapato de couro velho cheio de rachaduras e carente de graxa. Pensa que quando for advogado comprará somente sapatos de pelica italiana. Finaliza o cigarro. Antes de acender contempla seu formato e se sente orgulhoso por saber enrolar um baseado como ninguém. Nenhuma imperfeição. Dá o primeiro pega e sai caminhando. Na segunda tragada já começa a sentir o relaxamento corporal e sua percepção de tempo e espaço fica levemente alterada. Dá uma risada íntima e agradece a Deus por sua vida. Já não teme mais a dificuldade do trabalho. Quer que o trabalho se foda. Se imagina batendo com a cabeça do chefe na parede e fodendo com a secretária em cima da mesa dele. Difícil se sentir mais alto que isso. Tem uma estranha sensação como se alguém se aproximasse por trás dele. Um carro. Não olha. Caminha um pouco mais e agora tem certeza de que um carro vem lentamente pela rua bem próximo ao meio fio e a ele. Resolve olhar. A cor branca com pixels pretos e vermelhos da nova viatura da Polícia Militar não deixam dúvidas de que ele se fodeu. O policial desce da viatura com a ponto quarenta empunhada e apontada para o peito do estagiário. Ele se esqueceu que não é uma boa ideia um cara preto fumar maconha na rua em São Paulo, mesmo que esteja de terno e gravata. Mesmo que trabalhe e estude e seja apenas usuário. A brisa da erva não impede que ele sinta a dor das algemas exageradamente apertadas em seu pulso… O mestre de Karatê veio do interior do estado para ministrar aulas especiais em uma academia parceira, localizada na Rua Augusta. Foram quatro horas de viagem, mais dez horas de aulas seguidas. O cansaço foi recompensado com um bom pagamento em dinheiro. Saiu da academia as dez da noite. Iria caminhando para a Rua da Consolação, em direção ao metrô Higienópolis-Mackenzie, de lá seguiria para a estação da Luz onde faria a baldeação para a linha azul sentido Terminal Rodoviário do Tietê. Calculou que por volta das onze já estaria dentro do ônibus que o levaria de volta a sua cidade. Ao pegar a rua Dona Antônia de Queiroz se deparou com um tipo encapuzado que saiu sabe se lá de onde e atravessou em sua direção. O mestre já sabia que São Paulo é um lugar filho da puta de se andar na rua de noite. Sentiu medo mas também se muniu da certeza de que ninguém levaria a grana que lhe custara tanto esforço. O encapuzado apertou o passo na direção do professor. O professor já ensaiava o golpe mentalmente. A meio metrô de distância o mestre pode ver claramente o reflexo vindo da faca que o homem sacou da cintura. Antes que pudesse completar o movimento do braço para aproximar a lâmina de sua vítima, o assaltante recebeu um chute na mão, que fez a arma branca voar longe. O encapuzado então entrou em luta corporal com o professor. Não foi a ideia mais inteligente. Foi surpreendido com um chute na têmpora que o fez desabar sem consciência. O professor então verificou se não tinha derrubado nada. Virou as costas e se pôs em marcha. Deu cinco passos e ouviu um barulho como nunca tinha ouvido antes. Soou como uma melancia sendo fatiada. Olhou para trás e viu que o assaltante tentava se levantar, mas foi impedido por um pedestre que apanhou a faca do chão e enfiou na barriga do homem. O ladrão tentou lutar mas foi duramente golpeado múltiplas vezes. Tentou suplicar por sua vida mas o justiceiro apenas disse que agora ele iria assaltar os outros no inferno. Ninguém mais na rua além do professor, do assaltante e do vigilante odioso. O mestre pensou em gritar para que o agressor parasse o assassinato, mas o pânico invadiu sua mente. Tentou correr para a rua da consolação, mas foi bloqueado por uma viatura da polícia vindo na contra mão. Foi levado para o DP e o delegado informou que o assassino afirmou que tinha agido em conjunto com ele. Nenhuma testemunha além dos policiais que chegaram e viram o Sensei tentando escapar do local… O empresário dono de uma grande rede de lojas de departamento recebe uma ligação enquanto dirige. Olha na tela e vê que é do seu filho. Provavelmente para pedir dinheiro para consertar o carro que destruiu batendo em um poste, bêbado depois da balada. Ou para investir em uma start-up dos amigos de faculdade, com promessas de lucro certo. Sem paciência. Não sabe por que, mas sempre achou o filho um tremendo de um bosta. Achava isso bem antes da mãe contar que achou drogas escondidas no armário do jovem. Com três anos de paternidade já começou a sentir repulsa e se tornou incapaz de abraçar ou demonstrar qualquer tipo de afeto pelo filho. Mas isso não impediu que investisse muito dinheiro na formação do garoto, afinal, além de tentar esconder o sentimento de desprezo, não poderia ter um filho perdedor. Até o mandou para um intercâmbio no Canadá e esse foi o período de maior paz em sua vida. Paz que durou até o filho pedir para ele enviar dinheiro para pagar um aborto em uma garota do curso que engravidou. O celular continua tocando. Resolve atender. “Fala, que que você quer?”. Do outro lado da linha uma voz que não é do filho. “Aí bacana, bagulho é o seguinte. Tamo com esse viado do seu filho aqui e tamo cheio de ódio, certo? Se não chegar com as nota até hoje a noite nois manda ele pro inferno”. Desligou o telefone e deu risada, pensando que era o famoso golpe do sequestro que os presos fazem de dentro dos presídios. Se sentiu orgulhoso e pomposo por achar que ninguém engana ele. Segundos depois uma série de fotos chegam pelo aplicativo de mensagens. As fotos mostravam a cabeça do filho que já estava cortada em dois pontos na parte de cima, provavelmente frutos de coronhada de revólver. O sangue seco no cabelo o deixou com um aspecto de prisioneiro de guerra. Em todas as fotos se via uma mão segurando um trinta e oito. O pai ligou de volta e disse que tinha dois mil e quinhentos reais em dinheiro com ele e que poderia encontrá-los agora mesmo para entregar. “Dois mil e quinhentos você enfia no seu cu, certo? Quem manda aqui é nois. Negócio é o seguinte. Você vai fazer um saque de duzentos mil e trazer aqui pra nois. Certo? Tá pensando que nois é amador porra? Se envolver polícia ele morre. Tá dado o recado.”. O desespero tomou conta do empresário, estava quase sem conseguir dirigir por que sua visão ficou turva e suas mãos suavam e tremiam desesperadamente. O pânico realmente só chegou quando o sequestrador deu o valor exorbitante do resgate. Não era integridade do filho que o preocupava. “Puta que pariu! Duzentos mil vai quebrar as minhas pernas”, pensou. Disse que estava indo para o banco imediatamente sacar o dinheiro e que retornaria assim que estivesse com a quantia exigida. Mas tal promessa foi só um subterfúgio. Pisou fundo no acelerador da sua Mitsubishi Pajero Sport e tocou para a delegacia mais próxima. Entre manobras arriscadas e acendidas de cigarro ousadas, o empresário somente esqueceu de conferir o retrovisor, o que o privou de notar o Hyundai i30 preto com vidros fumê que o seguia o trajeto inteiro. Parou em frente à delegacia e registou o boletim de ocorrência de sequestro e teve a promessa do delegado que o filho seria resgatado. Foi para casa e não disse nada para a esposa e para a filha mais nova. As duas da madrugada recebeu a ligação da polícia civil informando que o corpo do filho havia sido encontrado em um matagal em diadema… O sábado de sol agrada a todos no Jardim Paulista. Todos os trabalhadores dos comércios arrumam um jeito de ir para frente das lojas para bater um papo e curtir a brisa refrescante da primavera paulistana. Os pássaros voam para lá e para cá em um balé esplendoroso em volta das figueiras frondosas que rompem o cimento da calçada com suas raízes resilientes. Até um visitante inesperado aparece por ali. Um pica-pau-de-cabeça-amarela, provavelmente residente do Parque Trianon, dá o ar da graça e faz com que todos se aglomerem na rua para aprecia-lo. Uma família, cujo trabalho é pedir esmolas em frente ao supermercado, naturalmente também se encanta. O pai e a mãe deixam os filhos de lado e se poem a observar o animal. Todos observam e contemplam e lamentam como a natureza foi devastada pelo aço e concreto da cidade. Um carro sobe a rampa da garagem de um prédio que fica ao lado do mercado. Um barulho como que um grito de um leitão rompe na rua, seguido de uma arrancada de motor e cantar de pneus. Os trabalhadores da Rua Pamplona até tentam, mas não conseguem alcançar o carro que atropelou o filho de três anos do casal de pedintes que ficou brincando na calçada enquanto os pais se distraiam olhando pássaro. Os que tiveram coragem de olhar o crânio esmagado e as tripas da criança carimbadas no asfalto, vomitavam, choravam, gritavam e andavam de um lado para o outro com as mãos na cabeça. Retirados rapidamente de sua contemplação e trazidos de volta para a realidade lúgubre da cidade em que vivem, da cidade que amam, de quem são prisioneiros. O pica-pau-de-cabeça-amarela levanta seu voo formoso por cima da aglomeração que se formou em torno da tragedia, em direção ao último pedaço de natureza incrustado no coração da Pauliceia.

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