#FlautaVertebrada um grito na minha cabeça me diz que é hora de sair da cama, de levantar, de escrever todos os gritos no papel, de resistir mais, porque os gritos doem muito

por Helena Arruda
um grito preso ecoa dentro de mim, batendo em todos os meus órgãos:
sinto uma dor aguda, uma pontada bem debaixo da costela esquerda,
um pontapé no meu baço.
penso na palavra “baço” e lembro que baços são meus olhos
diante da ignorância que assola o Brasil: pisco minhas pálpebras
incansavelmente, na tentativa de desembaçar as retinas cansadas – não desembaçam.
milhares de gritos gritam dentro de mim e eu, imóvel sobre a cama,
me contorço de dor e peço aos meus órgãos clemência, pelo amor de deus,
[de repente lembro que descobri há pouco tempo que a felicidade é deus e
que não acredito na felicidade]
mas meu coração me diz, “não!”, me diz que a dor só vai aumentar,
que é pra eu aguentar e me manda continuar e insiste em bater mais e mais e mais e às vezes eu desejo que ele me deixe em paz, mas ele é tão desobediente, não me deixa…
quando meu coração nasceu era ditadura no Brasil e ele observava atentamente as ameaças à democracia e me ensinava a lutar junto com ele, assim, num descompasso, batia forte, estranhamente.
um grito na minha cabeça me diz que é hora de sair da cama, de levantar, de escrever todos os gritos no papel, de resistir mais, porque os gritos doem muito, latejam, e eu estou cansada de lutar.
meu coração descompassado me aponta alguns caminhos… falo com ele que não pode me dizer o que fazer, mas ele, teimoso, sempre se une ao meu pensamento e, juntos, dão um jeito de me chantagear – então escrevo.
e todos os meus órgãos começam a se acalmar e meu coração então me sussurra: eu não vou parar agora e você vai comigo por aí e vai continuar e vai cumprir o seu papel, um dia isso acaba, a dor cessa e eu te deixo em paz.
Helena Arruda nasceu em Petrópolis. É mestra e doutora em Literatura Brasileira (UFRJ). Poeta, contista, ensaísta, é autora dos livros Interditos – poemas (2014); Mulheres na ficção brasileira – ensaios (2016), ambos pela Editora Batel; Corpos-sentidos (2020), Editora Patuá; Suas publicações mais recentes constam em Ficção e travessias: uma coletânea sobre a obra de Godofredo de Oliveira Neto (7Letras, 2019), Ato Poético (Oficina Raquel, 2020) e Ruínas (Patuá, 2020)