Fragmentos incertos num mundo sem vitamina D

Reflexões sobre a crença de que a crise provocada pela pandemia revelará a essência do ser humano, que descansará em paz em frigoríficos

Imagem: Meysam Azarneshin
por Iolanda Guilherme

O presente decidiu cair com tudo em cima do meu colo em um ano no qual o outono sucedeu ao inverno, e depois outro outono, e outro inverno, em uma solução de continuidade estacional só possível pelo deslocamento entre hemisférios, apesar da certeza de alguns de que a Terra é plana. As narrativas eram aquelas do fim, do começo e novamente do fim. Não há meios. O maior absurdo da condição humana é a implacável projeção que nos faz crer que um determinado porvir há de ser melhor, ou que o passado lembrado sempre foi mais doce. Difícil é meter os pés no presente e aceitar a situação na qual nos enfiamos… A mais complexa das imagens do apocalipse é a de que teria um depois de…

Contribua com O Partisano - Catarse dO Partisano

– Fica no ar por até três horas e em superfícies até três dias… – cerca de cinquenta dias sem comida, três a cinco sem água e ainda sobrevive, mas bastam quatro minutos sem oxigênio e o complexo funcionamento do organismo humano já era. As técnicas todas de meditação nos ensinam a concentrarmo-nos na função vital mais imediata, acorde e respire, respire profundamente… Como respirar quando o ar está contaminado?

– A pandemia nos atravessa enquanto precisamos atravessá-la… – Do grego aquilo que é comum a todos os povos. O atual comum esvaziou o espaço público e nos jogou no privado e desse nos fez olhar para o público. Dizem que é nos momentos de crise que se revela a verdadeira essência do ser humano. A tragédia não nos faz amorosos ou nos ensina ética instantaneamente… de onde tiraram essa ideia que a crise revelará a parte mais essencial do ser humano e essa é necessariamente positiva ou boa? Quem decidiu como é essa essência? Quem disse que tem essência?

Se dois países vizinhos abaixo da Linha do Equador estavam em meados de março em uma situação muito similar na quantidade de contagiados e falecimentos, e dois meses depois um deles tem mais de sete vezes a quantidade de mortos do que o outro, existem responsáveis?
Em um mundo sem pecado divino e sem justiça terrena a culpa é dividida entre os que tinham consciência? Onde está a regra desse jogo? Se o vírus não é vivo então a culpa não pode ser atribuída aos seres humanos viventes?

– A cloroquina precisa ser distribuída especialmente entre os mais pobres – da origem da vacina nosso sábio particular toma a expressão “imunidade de rebanho” para criar uma suposta salvação para a economia ao deixar de lado as vidas daqueles que correspondem a uma inteira população de Portugal que vivem em extrema miséria, mais cerca de um quinto da mesma que não tem casa ou vive em situação de vulnerabilidade social. Fazer o quê, morrer é destino de todos…

Leia também:  Fuga no Jardim Bonfiglioli

– A próxima fase será ainda mais difícil – a Itália começa a reabertura, os trabalhadores voltam ao trabalho mas as escolas permanecem fechadas. Quem ficará com as crianças, os idosos? Um casal comemora a diminuição da poluição em Roma por conta da pandemia crentes de estarem dizendo algo muito inteligente… Na guerra todos voltam para casa, agora todos saem de casa, estão menos livres mas levam máscaras e a certeza que podem fazer compras intuindo que perdem o sentido…

– Adiando o colapso e indo ao encontro do colapso – seguindo nossa tradição colonizada inicia-se no Brasil uma fase dois antes mesmo de atingido o pico de contágios, a fase de convivência com o vírus exige consciência, responsabilidade e esforço coletivo, elementos da “essência humana” difíceis de encontrar em um país com opaca memória do passado, crença na suspeita e pensamento mágico. A confusão para decidir quem está na zona vermelha, quem na laranja e quem na amarela é grande e não há acordo completo mesmo entre as comunidades europeias, imagina na região metropolitana de São Paulo. Entre seiscentos euros e seiscentos reais tem diferença?

– Está difícil conciliar as vontades do presidente com a realidade… – paranoico o déspota desesclarecido declara que não pode apresentar seu exame por que podem envenená-lo como quando ele pede remédio na farmácia de manipulação e pede em nome de outra pessoa por que ele é figura carimbada… o então atual ministro da saúde fora demitido por que queria seguir a OMS, o seguinte foi nomeado por que parecia morto e pouco preocupado com a situação ao redor mas teve sua cabeça cortada porque não defendeu a cloroquina, o terceiro não existe, general da reserva pronto a esconder os dados do vírus, a população aguarda a nomeação do cavalo do presidente ao cargo…

E ainda assim se move, deliberadamente continua, como no eterno retorno para nós mesmos, verificamos de um ponto a outro quais as convergências e divergências nas diversas experiências e no fim a curva do contágio não é nunca a mesma, debaixo da linha do equador se inventou um parâmetro novo que não segue nenhuma recomendação internacional com uma estratégia que tem tudo pra dar errado…

Leia também:  Banco ônibus mercado | por Andri Carvão

– O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta… – Mais de uma pandemia. As classes médias a sofrer com a distância, preocupadas com seus orçamentos e sem poder enterrar seus mortos, mas com comida na mesa diariamente mesmo se nem tudo está perfeito. Esperavam ansiosos que tudo acabasse para voltar a uma normalidade anterior insustentável. E tem aquela outra “classe” bem mais instável porque as pessoas já se encontram com a imunidade debilitada antes do contato com o vírus, já que nem sempre havia comida na mesa e tudo estava longe de estar perfeito. Esperavam ansiosos que tudo acabasse para voltar a uma normalidade anterior insustentável.

Faço somente aquilo que é essencial. Leio as notícias pela metade, porque sei que o todo não vale a pena em tempos emergentes. Me concentro nas atividades diárias como se fossem a única coisa realmente importante a se fazer, cozinhar é o único ato de amor que posso executar. Presto atenção ao pequeno ao silencioso ao quieto microscópico. Tento não perder tempo com muita metafísica por que também não adianta nada, a consequência de estar indisposto é o mal estar do século passado, o atual já nem percebia o estado em que estava…

– Na falta de opção a escolha não existe… – Tinha dois grupos tinha três tinha dez cem trezentos e cinquenta tudo depende do ponto de vista e nas múltiplas realidades nenhuma empatia de fato válida…

– Eles precisam aprender a morrer… – disse o vírion para o vírus – Meu querido, você precisa entender que a pandemia é uma grande aceleradora de futuros, estamos antecipando aquilo que eles tanto almejavam, com obsolescência do ser humano através da vida on-line compras estudos sexo virtuais… depois da segunda revolução do contato físico tudo será mais fácil para os pequenos grandes homens… não chore que o mundo que morre é o mundo que perde e aquele que fica é o que vence, e o segundo é sempre mais interessante, ao menos dentro do darwinismo estranho que alguns deles inventaram que beija a eugenia… eles são bons em inventar teorias que justificam os próprios erros, ah, nisso eles são bons, pseudoteorias sobre os próprios erros e no fim tem uns que acreditam que até mesmo nós fomos inventados em laboratórios por uma parte deles mesmos para atacar a outra por conta de uma disputa sobre aquilo que eles reputam a coisa mais importante “do mundo”, uma tal de economia que sinceramente não me parece a melhor das invenções daquela espécie, a da roda foi muito mais útil até porque não criou um capital fictício que faz todos os castelinhos de ilusões deles desabarem…

Leia também:  Como o acaso que me deteve | por Fernanda Noal

Das sacadas italianas ninguém mais aplaude os trabalhadores da saúde que voltam para casa enquanto os outros começam a sair estão menos vivos a sofrer o estresse pós-traumático e salvaram vidas sabendo que as perderam… Os telespectadores em êxtase aguardam os próximos heróis… Os caixões empilhados tentam descansar tranquilos no velho mundo…

– Enquanto continuamos cozinhando pandemias que mais tarde nos parecerão inevitáveis… – SARS MERS Influenza A H1N1 gripe aviária… – duzentas novas doenças infecciosas zoonóticas surgiram nos últimos trinta anos e nenhuma é resultado da nossa má sorte… – não devemos temer os mísseis mas os vírus… o antropoceno nos dá o orgulho de saber o quanto somos “centrais” no planeta Terra e nos dá o direito de destruir espécies, inclusive a nossa mesma de acordo com a classificação de quem é mais ou menos “humano”. O vírus é foi e continua sendo nosso único parâmetro social no momento. O vírus é o termômetro louco da espécie que mostra sua essência…

– Que tipo de pessoa buzinaria em frente a um hospital? – Se perguntava o vírus enquanto a Itália citava Adriano Olivetti o Brasil reabria os shoppings a China anuncia recontágio e mutação, e alguns depositavam grandes esperanças em um mundo que nunca existiu…

Contribua com O Partisano - Catarse dO Partisano

Para não desmentir Dante criamos nosso próprio inferno. E éramos bons nisso. A realidade supera a ficção. O último cigarro apagado na umidade evidente de um mundo fechado o último arrepio diante do início do inverno e a última vez que nos beijamos… fragmentos incertos em um mundo sem vitamina D…

Deixe uma resposta