Fragmentos de vírus e vida

“A ciência nos dá a racionalidade necessária e a clareza de quão distante está a vacina, mas não serve para amenizar a dor das mortes e das ilhas criadas”

Imagem: ANPAS
uma crônica de Iolanda Guilherme

– A catástrofe está no fato que as coisas continuem como estão… – ecoava a voz do professor entre as paredes de uma aula fria de final de janeiro. Escutava essa voz, mas com uma distância absurda, como se a catástrofe, o fato e as coisas não fossem nada.

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Havia uma profundidade escondida no fundo da classe, em uma pequana fresta de onde vinha um raio de sol que não tinha nada a ver com aquela exibição de imagens da segunda guerra, na tela o massacre o colapso a fome.

Me peguei pensando pela primeira vez de fato quando a nossa companheira de casa nos disse: compro dez quilos de farinha, um pouco de vinho e estamos prontos.  Mas primeiro me parecia uma coisa distante, talvez por que deveria partir, talvez por que quando se está no exterior acreditamos que existem coisas que acontecem mas não nos atingem nunca. Perguntei: mas vocês já viveram algo parecido? Geralmente quanto tempo dura? Mari me respondeu: não, nunca vivemos algo parecido, que diz?

– A Itália toda tornou-se zona vermelha – ecos dos jornais enquanto comíamos pizza na mesa da cozinha a rir… – A Itália tornou-se toda comunista – brincava a garota estrangeira que gostava de Bella Ciao e a quem não interessava mais o comunismo. Os primeiros dias pareciam tranquilos por que não pareciam infinitos. Nas sacadas a Itália se levantou e o extraordinário tinha alguma beleza… Depois deixada a Itália com alívio e culpa como se desertasse de uma guerra minha mas não minha…

– Felizmente o vírus não sobrevive no calor! – ao chegar no aeroporto pensava que eu fosse a ameaça. No voo todos educados seguindo as regras, as medidas de segurança para evitar o contágio. Ao chegar, não sei como, as mesmas pessoas se tornaram burras, é que aquela etiqueta não é nossa e fazemos de conta que a seguimos só “para inglês ver”.

Na imigração perguntei onde posso fazer o teste, acabei de chegar de um país com transmissão…

– Faça a observação sozinha em casa por uma semana e fique tranquila – me respodeu a autoridade que não parecia segura de sua resposta…

O outro, sempre o outro a ter e nos trazer os problemas. O Outro, com a maiúscula de Said. Foram eles que comeram os morcegos, o oriente é incompreensível, nos anos oitenta foram os africanos a ter relações sexuais com os macacos, ou talvez o vírus seja uma conspiração comunista?

Hubei é distante, Wuhan é distante, a China é do outro lado do ocidente… Codogno é distante, a Lombardia é distante, a Itália é distante da comunidade europeia… a “solidariedade” humana se partiu ou nunca existiu?

Chegou debaixo da linha do equador. E não morria ao sol, ainda forte em final de verão. Como Milão que não parava o Brasil não podia fazê-lo, de acordo com um grande sábio que falava de política, economia e medicina, mas não entendia nem de ética, nem de números nem de sanidade.

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– As decisões são tomadas não só com base na ciência, mas também na política e na economia… – Sabemos só que devemos saber alguma coisa mas não sabemos nunca por que sabê-la. A ciência nos dá a racionalidade necessária e a clareza de quão distante está a vacina, mas não serve para amenizar a dor das mortes e das ilhas criadas. Não serve para fechar a ferida antropocêntrica. O que pensam nesse momento aqueles que não pensavam? A economia é uma outra prisão, que como todas aquelas criadas por nós mesmo é mais difícil de aceitar que colapse, mas colapsa…

– É o que temos que viver agora… – rumores dos primeiros saques nos supermercados no sul da Itália enquanto os estadunidenses do norte tentam comprar todos os equipamentos de proteção individual da China enquanto alguns caixões são empilhados outros dançam em um estranho ritual no qual se ri das mortes alheias que não sabemos como aconteceram por uma “gripezinha” enquanto nos dizem que os caixões enterrados na Amazônia estão vazios isso não passa de uma histeria criada pelos comunistas para colapsar o presidente…

– # eu fico em casa # nós ficamos em casa # Constituído por muitos componentes extremamente interconexos os movimentos são feitos de modo a salvar o organismo complexo da sociedade. As informações tornam-se mais que nunca fundamentais para as medidas e parar o movimento de cada célula se faz inevitável para que a reprodução do organismo às margens do vivente não continue. Momento no qual se pode aproveitar o tempo livre para desenvolver uma nova habilidade ou hobbie. É só ficar em casa, se tiver uma…

Os grãos de areia provavelmente não param para pensar que antes eram parte de formações rochosas muito maiores, será que as nossas células param para pensar qual seria o motivo de ser parte de uma “coisa maior”? No século dezenove alguém fez um experimento com um filtro e descobriu aquilo que já existia no início… Ideia indigna descobrir algo que já existia, como aquela vez que descobriram a América…

O vírus nos olha como de um microscópio invertido. Entende os movimentos das nossas células envolvidas na complexidade do macro. E lança suas cepas de ácido ribonucleico para capturá-las. O vírus nos olha correndo nos supermercados para comprar papel higiênico. Nos olha a fechar as portas com os cotovelos e a vender máscaras por dez euros. Vivo e não vivo, nos olha com espanto. Se move e nos faz parar.

– Algo que resiste a entropia capaz de evitar a desordem e a decadência em equilíbrio… – Existem imagens iniciais nunca superadas. Uma explosão e começamos. Começamos quem? A vida é um conceito que inventamos para nos sentir melhor afirmam os biólogos em oposição à nossa vã filosofia. Mais de cem definições e provavelmente todas estão erradas… Talvez nascer crescer reproduzir-se e morrer seja suficiente…

– O vírus não é o vírus inteiro, o verdadeiro “eu” do vírus é a fábrica intracelular de células infectadas e não a partícula vírion. O período “vivo” da “existência” do vírus é aquele nas células humanas. Pensemos bem e somos nós o vírus? Parte indelével da condição humana, o veneno é inerente a Natureza. O micro nos leva a distância múltipla dos corpos e a insuficiência múltipla dos órgãos.

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Em um lugar ruim e autoritário o Estado aluga um quarto de hotel para você se isolar. Viverá isolado até nos assegurarmos que não está contaminado. Debaixo da linha do equador não existem testes e os organismos às margens da sociedade não podem fazer lockdown.

Uma quarentena que dura quatorze dias. Uma quaresma em um ano sem Páscoa os vinte oito dias do ciclo feminino os quatorze dias do ciclo viral o cálculo do tempo através do carbono quatorze os setes dias da semana através da ótica dos quatro cavaleiros do apocalipse em uma quarentena de não sei quantos dias…

Tudo certo, fica alegre fica triste, eu sei, parece difícil parece fácil fica perdido sente o vazio… tantas coisas talvez dessa vez acabe… tantos reflexos sentimento de saudade de sentir sozinho tudo passa na mente ao mesmo tempo tenta parar um único pensamento para continuar antes de esquecer-se… é muita pouca coisa em tanto tempo tão pouco tempo em tanta coisa tantos rostos que passam diante do naufrágio do insconsciente coletivo ativo… é simples é banal é complexo é paradoxal sofremos sem parar a sonora emergência…

– Aqui ou lá, tenente, estamos todos em qualquer lugar por erro. A vida é uma hipótese plena de tempo para render-se. A profissão que nos é dada é a luta mais vã não obstante recomecemos todas as manhãs. E talvez era Drogo quem olhava das varandas a esperar o inimigo invísivel e a cura impossível através dos setes andares do hospital absurdo do processo de Kafka com o deserto de Buzzati.

– O retorno à normalidade apesar da paciência necessária – racionalmente parecia claro o funcionamento do vírus e o por quê de parar. Parecia claro que a sociedade italiana tivesse entendido a necessidade das medidas de segurança depois da infeliz subida exponencial dos contágios e dos mortos.  Apesar do massacre inscrito cotidianamente diante dos olhos, a maior esperança da quarentena era que terminasse o quanto antes… E a jornalista pergunta ao presidente quando as crianças poderão retornar à escola…

– Não conheço nenhum hospital que esteja lotado – Reabrem os centros comerciais no sul do Brasil na metade de abril quando ainda não superamos nem mesmo o início da fase um os zumbis das compras saem a comprar não sei o quê não sei para quê talvez cérebros sãos para comer a curva do contágio cresce enquanto a economia não para e os leitos nos hospitais não existem…

Há quatro anos alguém escreveu em um daqueles livros fragmentados de história que são as redes sociais: -O fato que existam advertências como “não beber” em embalagens de água sanitária me faz entender que Donald Trump pode se tornar presidente – e aqui estamos a acompanhar quem a propósito de uma hipotética “brincadeira” beba o alvejante como forma de matar o vírus. Seriam os mesmos que elegeram Trump? O futuro é vortéx…

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– Não existem ainda as condições para retornar à normalidade – nos dizem as falas um pouco mais equilibradas e assim a Itália segue fazendo os sacríficios necessários mantendo o distanciamento social em uma segunda fase enquanto na China as escolas reabrem e nos chegam as imagens das crianças vestidas com os equipamentos de proteção individual cada um sentado sozinho à mesa a mesma mesa para estudar e comer nenhum contato físico entre colegas troca de máscaras durante o horário das aulas qrcode para verificar a temperatura dos corpos aquilo que vocês chamam de normalidade não retornará…

– O vírus nos levará a uma crise de fome no mundo – cada um de nós sempre se sentou diante de uma tela todos os dias a olhar como vão as coisas antes o massacre cotidiano talvez não nos importasse, agora parece que estamos preocupados, é necessário que tantos morram para darmos valor a vida? A tragédia não está no fato que sempre tenha alguém com fome?

– E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagre… – disse no dia em que as mortes superaram cinco mil no Brasil, a cada vinte quatro horas um novo record de lá pra cá, e o que pode fazer um chefe de Estado? Sem falar das subnotificações, das fossa comuns abertas pelo Estado, das mortes marcadas com a inscrição “em espera de resultados…” Muito fácil a imagem “Lasciate ogni speranza voi ch’entrate”, muito fácil… o inferno está em todas as partes…

– Não existirão alguns vencedores e alguns perdedores: ou vencemos todos ou perdemos todos – Mas não somos todos iguais… não somos todos iguais… Quem serão os submersos e quem os salvos? Como fazer poesia depois?

O invisível quer nos falar. Quer nos dizer que normalmente não percebe que nos faz mal até por que só se sente consciente de alguma coisa quando já está dentro de um humano e não tem tempo para entender nada envolvido que está no trabalho de se desenvolver mas sente um certo arrepio quando nos vê a dançar com os caixões…

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A catástrofe anunciada a morte consciente o abraço sem braços o rumor de fundo o rumor de fundo o corpo que cai e os caixões a dançar em um baile cósmico a nos lembrar que ainda não acabou…

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