Dueto | por Sergio Rocha

#FlautaVertebrada: “Prefiro a revolta à meia-luz, lábios entreabertos, a língua toda como um rio caudaloso afluindo e se misturando e conversas só mais tarde”

Imagem: Deniz Z
por Sergio Rocha

Não há porque temer a passagem pelos dias, mesmo aqueles mais compactos nos quais um lado serve para o sucesso imediato e o outro presta contas a deus ou ao diabo, quem sabe aos dois quase em simultâneo. Não há mesmo porque olhar de fora e imaginar que a dor é menos insana só porque dói no outro e nem sangra se eu não olhar. Melhor misturar-se por completo, confundir as secreções e as postagens, deixar as contendas sem nenhuma demonstração de que depois nos embrenharemos tão profundamente que cresceremos com as raízes das árvores e com toda a melancolia que resistir. É como um eu que caminhasse ao meu encontro. Creio até que este eu que me olha feito outro não perceba as mãos sobre a ferida nem se encanta com a tentativa heroica de livrar-se dos medos, não se preocupa se grita tão alto que ao redor todos olham – menos você e eu que não acreditamos um no outro, sequer na perspectiva do outro que habita escondido sob as pálpebras toda vez que durmo e que dormes banidos bandidos um do outro. Tão seguro de si este eu e tão ausente que seria melhor cegar-me e continuar pelo tato, perscrutar os momentos, farejá-los, auscultar-lhes a alma antes de descer aos porões onde jogamos fora a vida em capítulos. Não há razão para que não nos lancemos aos infernos e encaremos de perto as redundâncias que nos emprestam os dias e os levam à superfície, aos céus de deuses providenciais e vingativos, nem porque evitar o afogamento destas flores que trazes nos cabelos. Eu mesmo não as perfumo com a velocidade de uma aventura banhada nos trópicos, nem as acompanho pela televisão quando cenário plástico, mortas bem antes de qualquer cena; prefiro que este eu ao meu lado devolva-me as roupas depois e antes me encante com esta serpente que espreita do beco, que desliza em mim feito um punhal de fogo. Prefiro a revolta à meia-luz, lábios entreabertos, a língua toda como um rio caudaloso afluindo e se misturando e conversas só mais tarde quando desacorrentados percebermos que as chamas marcaram para sempre esse eu tão perdido em você, você tão enlouquecida no outro, o outro tão desatado de mim.

Sergio Rocha, paulistano dos altos de Santana, escritor, poeta, jornalista (de)formado pela Filosofia, mas principalmente pai da Mariana, Fernanda, Giovana e avô do Ravi. Tem dois livros publicados, “Terceiro fragmento”, J. Andrade Gráfica e Editora, 2012, Aracaju/Se e “Um poema depois da chuva”, Rusvel-Triver Studio e Editora, 2018, São Paulo/SP. Vem participando de várias antologias impressas e virtuais. Organiza o Sarau Santa Sede, ministra oficinas de criação literária e é editor na Casa Editorial Livrará.

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