#FlautaVertebrada: “Como o leite que fervia e tingia de branco a laje de tijolos enegrecida, como se acaso houvesse um tempo diferente em cada manhã e não bastasse a vigilância; era assim”

por Sergio Ravi Rocha
(você ainda estava nua quando o leite derramou)
Aquela escuridão era comum, só não sabíamos a que horas se derramaria por cada canto, mas nem por isso prestávamos atenção; era ocorrido e pronto. Como o leite que fervia e tingia de branco a laje de tijolos enegrecida, como se acaso houvesse um tempo diferente em cada manhã e não bastasse a vigilância; era assim. Alguma coisa comum que não entristecia nem abalava o juízo, era apenas o dia a dia com a escuridão repentina.
O que digo é que não havia noite, havia um escuro que saltava sobre todos e tudo e tudo silenciava um pouco quando escurecido; depois a gritaria era a mesma, e durante, as velas tantas quanto acesas.
Você costumava cochilar, eu corria com os olhos bem abertos procurando ver o que ninguém via no escuro; não me escapava um palmo de realidade. Só depois de um tempo entendi que o escuro tinha outra fonte e determinava outras atuações, a realidade era mais que uma, os universos se entrecruzavam e os mapas astrais perdiam por completo o sentido; no meio do escuro tudo era outra coisa, outra coisa comum ao tato, às narinas e à percepção dos poros.
Foi numa destas incursões que te conheci melhor. Vi por dentro o que sonhavas e as borboletas de tão azuis nunca mais deixaram o céu nublado, e apesar do escuro profundo, as telas azulavam de tão alegre revoar; os pintores encontravam os matizes mais inesperados: azul borboleta feliz; azul querendo ficar mais claro; azul da cor da borboleta mais alegre e o resfolegar dos cavalinhos que chegavam com a chuva também era azul, azul cansado de tanto trotar.
Quando a luz voltava, os afazeres estavam todos por fazer e eu te fazia carinho, um carinho azul-claro de clareado outra vez. O leite derramado ninguém chorava; era o que tinha que ser e só porque ser outra coisa não seria mais leite derramado nem seu cheiro fervido de seis e pouco da manhã e pouca conversa já que tanta pressa agora e depois. Por isso a escuridão era um jeito de ser menino ou fazer de conta que você ainda estaria nua escondida sob os lençóis azuis do sonho e eu seria a ventania levando a roupa de cama, sorrindo no escuro tantos suspiros de amor açucarado.
Sergio Ravi Rocha, paulistano dos altos de Santana, escritor, poeta, jornalista (de)formado pela Filosofia, mas principalmente pai da Mariana, Fernanda, Giovana e avô do Ravi. Tem dois livros publicados, “Terceiro fragmento”, J. Andrade Gráfica e Editora, 2012, Aracaju/Se e “Um poema depois da chuva”, Rusvel-Triver Studio e Editora, 2018, São Paulo/SP. Vem participando de várias antologias impressas e virtuais. Organiza o Sarau Santa Sede, ministra oficinas de criação literária e é editor na Casa Editorial Livrará. Escreve n’O Partisano quinzenalmente aos sábados.