Condicionais | por Sergio Rocha

#FlautaVertebrada: “Precisaria desaprender hábitos e enfiar-me de corpo e alma no vício da sua visão, gerar outras estórias e sorrir com dentes novos antigas aspirações”

Imagem: Patricia_Roman

por Sergio Rocha

Precisaria mesmo de um corpo em lumes, enlouquecido de porta em porta, espiando por entre a troca de luzes outras presenças imprecisas, cujos nomes inaudíveis se faziam sussurrar. Precisaria mesmo de outra morte mais definitiva, de um rio ainda mais enfurecido que me afogasse para sempre dentro das cenas escolhidas, que me mantivesse pétreo incapaz de gesto, vidente destas alucinações enquanto algum dia passasse lá fora e me acenasse um adeus técnico, calculadamente gelado. Quando não mais precisasse de nenhuma emoção, retribuiria o aceno e aguardaria da noite os primeiros bocejos e dormiria em paz, tão tranquilamente que não acordaria para estes dias infiltrados, úmidos, em cuja cabeceira tuas preces revolveriam meus pecados buscando-lhes uma salvação não desejada. Precisaria de um silêncio compacto e de tragadas lentas; gostaria que não me proibissem certos vícios e que me deixassem olhar, de relance que fosse, os trejeitos do teu corpo. Gostaria tanto de tantas coisas indelicadas e indizíveis, coisas como respirar de mais perto os ares de tão longe, viver dias sequer contados no calendário do seu tempo, coisas como sonhar os sonhos de um animal extinto ou acordar nas manhãs de outra civilização. Precisaria desaprender hábitos e enfiar-me de corpo e alma no vício da sua visão, gerar outras estórias e sorrir com dentes novos antigas aspirações; sim, seria tão mais necessário olhá-la por ângulos improváveis só para crê-la menos encantadora e então arrebatar-me esconjurando cada detalhe da tua silhueta. Precisaria tanto decidir-me se eu ou se outro além dessas insinuações, além dos sabores que trago vivos na saliva. Precisaria até encerrar-me em mar alto sob todos os sóis pretendidos pela vida e salgar os olhos com tanta imensidão. Até das saudades levadas em desatino como se acaso destino desta mesma improvisação que é amar-te todos os dias, eu precisaria. Precisaria concessões e finais escritos sob medida; fotografá-la de ímpeto e agressão invadindo teu quarto quando já descartado dizendo-te não as palavras que me inspiras, mas aquelas devidas. Precisaria, ao invés de uma cena qualquer, apenas pedir-te um beijo, e mesmo que eu ficasse pelo caminho, beijar-te simplesmente, então.

 

Sergio Rocha, paulistano dos altos de Santana, escritor, poeta, jornalista (de)formado pela Filosofia, mas principalmente pai da Mariana, Fernanda, Giovana e avô do Ravi. Tem dois livros publicados, “Terceiro fragmento”, J. Andrade Gráfica e Editora, 2012, Aracaju/Se e “Um poema depois da chuva”, Rusvel-Triver Studio e Editora, 2018, São Paulo/SP. Vem participando de várias antologias impressas e virtuais. Organiza o Sarau Santa Sede, ministra oficinas de criação literária e é editor na Casa Editorial Livrará. Escreve n’O Partisano quinzenalmente aos sábados.

Deixe uma resposta