Resenha do livro “o que a gente não faz para vender um livro?”, de Vitor Miranda, volume de “contos te socam, te levam às cordas, são golpes na cara e no plexo que te deixam sem fôlego”

por Sergio Ravi Rocha
Li, ouvi em algum lugar da minha adolescência que perguntado sobre como ser moderno, Gilberto Gil respondeu, “não sou moderno, sou contemporâneo” e cismei, desde então, com isso de moderno e contemporâneo. Vitor Miranda, o poeta/escritor/cantor/fotógrafo, claro esta ordem não quer dizer nada, também cismou com os conceitos que estreitam tanto uma coisa como a outra, percebeu que a modernidade é autofágica, alimenta-se de si através dos desavisados que a divinizam, e que o campo da contemporaneidade não é apenas mais amplo, é revelador.
No livro de contos “o que a gente não faz para vender um livro” (Sempiterno, 2021), o autor nos aponta, escrito a escrito, o que a modernidade nos rouba e o que a contemporaneidade nos presenteia, ele sente no seu dia a dia de escritor que a transitoriedade do moderno nos obriga a acelerar cada vez mais. No ritmo da modernidade, um personagem lamenta que “nunca vamos saber se a pessoa com quem compartilhamos um momento sente a mesma coisa que a gente sente” (amor em preta e branco, página 29), pois, além de fugazes, nossos momentos não vêm por inteiro, mas aos pedaços, apartados por convenções e heranças banhadas a preconceito. Só a compreensão da contemporaneidade nos desobrigará destas funções e amarras sociais.
“O que a gente não faz para vender um livro” é um livro de contos que não se dá conta do quanto importam as histórias que contamos. Mesmo que estas histórias não sejam nossas, contá-las é a diferença entre transmitir e apagar, e transmitir é contemporâneo. Os vinte e oito contos que compõem o livro são curtos, fáceis de ler e quando você se dá conta, já levou um jab; fáceis, pois fluidos, envolventes, mas não se enganem, não são exatamente palatáveis. Os contos te socam, te levam às cordas, são golpes na cara e no plexo que te deixam sem fôlego, como em “o baseado da minha avó”. Você vai sendo estapeado a cada relação que se estabelece nos moldes preestabelecidos pela agonia da vida moderna – eu sacaneio, tu sacaneias e ele, certamente, sacaneará.
Jabs são golpes curtos, como os contos do livro. Embora machuquem, não são os jabs que te derrubarão, eles determinam a distância e minam a resistência do adversário. Leitores não são adversários, mas precisam ser minados. E mimados. Vitor Miranda mina e mima com desenvoltura, pois compactua, atua com seu leitor. No conto “Toulouse Lautrec”, os versos de Vicente Celestino (página 61) amalgamam diferentes sentimentos e vivências. Mas não há trégua.
Em “vadia” (página 89), os golpes se encaixam ainda mais acachapantes, na ponta do queixo. Trata-se de um diálogo e de uma perseguição, a caça de um macho torturador, a liberdade da presa e um final que te golpeia fundo; as verdades, eventuais e supostas, são fundadas no terreno das diferenças estruturais. Em seguida, “até quando deus me escutar” (página 93) vai te atirar à lona sem dó, é de lá que você se sentirá só, enredada nas tramas das mesmas verdades eventuais e supostas que amarguram e machucam corpo e alma aviltados. Você espera a contagem até oito e levanta ainda meio tonta e mais uma saraivada de golpes, os mesmos de todos os dias que trafegam nos dispositivos móveis e assemelhados no seu culto à ignorância e ao desprezo da vida, afinal, é moderno pautar-se pelas máquinas da verdade (“maria madalena”, página 99).
No conto “feliz natal, poeta” (página 125), dois poetas conversam enquanto observam dois cachorros copulando, conversam sobre o amor, sobre o medo de amar, sobre o medo de serem rechaçados pela pessoa amada, afinal, as pessoas “se apaixonam pela poesia que é nossa vida e depois vão embora porque nossa vida é uma poesia”. Fica implícita a constatação de uma vida resolvida pela absoluta falta de qualquer conclusão. “revolução dos ubers” (página 131) é um petardo de contemporaneidade. Na medida em que a situação se desenha drasticamente para um uber, este estabelece um nível de comunicação com seus possíveis assaltantes que não só os demove da ação como os arregimenta para uma revolução social.
Fechando o livro, “causo de artistas” (página 143), o autor vai ao futuro, 2064, para inventariar sonhos e frustrações típicos de qualquer artista que vai parar numa casa dos artistas. Sonhos ainda e frustrações imperantes que atestam “a ausência das coisas” como aquilo que mais chama a atenção, mais até que a própria ausência de si. Envelhecer é a prova cabal da nossa contemporaneidade mesmo que ignorada.
As ilustrações de Fernanda Bienhachewski são primorosas e têm papel fundamental na condução do leitor, pois verdadeiros convites à imaginação.