#FlautaVertebrada: o encontro do poeta com grandes escritores em cenas banais do cotidiano de uma grande cidade

por Andri Carvão
Banco Beckett
Na saída do trampo dou um pulo no banco pra pagar umas contas vencidas na boca do caixa. Sento na sala de espera e aguardo minha vez com a cara enfiada num livro. O sinal da senha eletrônica desvia a minha atenção da história automaticamente. De dois em dois minutos o sinal da senha eletrônica – tlirón! – tira a minha concentração da leitura, as imagens deixam de se formar na minha imaginação e só vejo palavras. Num relance, num menear da cabeça, em quem meus olhos caem – e o meu queixo também – no caixa eletrônico pedindo ajuda pra garota terceirizada de camiseta POSSO AJUDAR? É ele mesmo! É ele: senhor Beckett em pessoa, em carne, osso e pescoço; a carona comprida e os olhos tão claros, mareados e absurdos que chegam a ser enevoados. O senhor Beckett saca uma nota preta, dobra o maço e enfia no bolso da frente da calça. Penso em ir atrás dele, mas logo desaparece pela porta giratória enquanto o sinal da senha eletrônica anuncia a vez de quem estava esperando Godot.
Ônibus Miller
Deixo o banco tomando o maior cuidado com a minha carteira morrendo de medo de ladrão. Então rio da situação porque tinha acabado de ser assaltado na agência com juros e correção monetária. Depois de pouco mais de meia hora de espera no ponto sem cobertura debaixo de uma garoa a toa, meu ônibus chega normal, lotado como sempre. Fico no primeiro degrau da escada espremido entre umas caixas de feira, um perfume adocicado, um talco, um sovaco e a porta automática. No ponto seguinte alguém dá o sinal e eu me seguro como posso pra não cair, pois o motorista abre a porta com o ônibus em movimento. Para que o senhor possa embarcar, meia dúzia de peão tem que descer do ônibus pra dar passagem. Quem é? Quem é? Quem é? É ele! Só pode ser ele: senhor Miller em pessoa, em carne, osso e pescoço; dono e proprietário de uma calva lustrosa de respeito como um caralho louco. Como um jovem folgadão finge dormir esparramado no banco amarelo reservado, o senhor Miller viaja de pé.
Mercado Hesse
Passo o bilhete único de mão em mão até chegar para o cobrador que debita minha passagem e gira a catraca para eu descer pela porta dianteira. Antes de chegar em casa me lembro que preciso passar no mercado para comprar uma listinha de mantimentos que minha companheira me avisou por mensagem que estavam faltando em casa. Coisa pouca, meia dúzia de coisas. Como é um produto de cada corredor do mercado, rodo que nem barata tonta passando várias vezes no mesmo lugar. Na fila do caixa atrás de uma meia dúzia de pessoas armadas com seus carrinhos e cestas de compras, quem eu vejo passando a compra na fila do caixa especial? Não é possível, mas é ele mesmo! Sim, é ele: o senhor Hesse em pessoa, em carne, osso e pescoço; na estica como um segurança de loja ou um pastor de igreja pentecostal e carinha marota de lobo da estepe pronto pra procurar os óculos na bolsa pra poder enxergar os número e digitar a senha catando milho na maquininha. O senhor Hesse é de uma paciência que a fila e a moça do caixa não têm. É um sinal.
Andri Carvão cursou artes plásticas na Escola de Arte Fego Camargo em Taubaté, na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e na EPA – Escola Panamericana de Arte [SP]. Graduando em Letras pela Universidade de São Paulo, o autor tem diversas publicações online e antologias. Um Sol Para Cada Montanha [Chiado Books, 2018], Poemas do Golpe [editora Patuá, 2019] e Dança do fogo dança da chuva [editora Penalux], entre outros. Escreve n’O Partisano quinzenalmente às terças-feiras.