Alvim, os demônios e o diabo em pessoa

Segunda parte da série Bolsonaro n’Os demônios de Dostoiévski traz, quase que como um aviso, as similaridades entre a obra e o caos diabólico que o presidente instalou no país

O diabo em pessoa. Imagem: reprodução
por Mariana Lins

Para quem tem boa memória, está-se aqui a convocar a mesma obra com a qual Roberto Alvim, quando secretário da cultura, pretendeu inaugurar o “renascimento” do teatro brasileiro. Não fosse o seu descuido de ter colocado a própria esposa para gerenciar o singelo fundo de 3,5 milhões destinado à montagem da adaptação e, segundo o próprio Alvim, a ação do diabo em pessoa que o enfeitiçou a ponto de estrelar e veicular nacionalmente uma imitação ipsi litteris da propaganda nazista de Goebbels sem que percebesse (o que lhe custou o cargo); poder-se-ia ter testemunhado no surreal Brasil atual, uma obra de estatura magnânima servir de artilharia barata para a “máquina de guerra cultural” que Alvim julgava estar a fabricar para si e para a sua então vindoura trupe de “artistas conservadores”. Ao que parece nessa o diabo nos salvou, muito embora apenas para depois incorporar em Regina Duarte e professar o despautério oracular de que a cultura virou agora algo como o “pum do palhaço”.

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Por ironia do destino, Os demônios, ao que parece, entrou em cartaz por via outra. Pois é como se o Brasil atual se tornasse cada vez mais uma releitura da obra, como se a própria vida tivesse se tornado o seu palco. E o que é pior: ao se tomar a vida pela obra, poderíamos supor que juntamente à eleição de 2022 estaríamos a nos aproximar de algo como a Terceira Parte do romance, precisamente do capítulo “A festa”, a partir do qual, após uma série de discursos, atos e condutas completamente estapafúrdios (ainda que caoticamente orquestrados), segue-se que a província na qual se passa o romance é incendiada, trabalhadores pacíficos são açoitados em público, reputações são destruídas, o palácio do governador é assaltado e destroçado pela escória da cidade, algumas pessoas são assassinadas, outras cometem suicídio e além de todo esse delírio coletivo, há também casos de enlouquecimento individual, por assim dizer, sem retorno – como o do próprio governador daquela que até então era uma cidadezinha pequena que em nada se destacava, localizada nos confins da atrasada e agrária Rússia novecentista. Governador que quando já em estado de demência em meio ao incêndio, constata o que não seria estranho a nós: “Incrível. O incêndio está nas mentes e não nos telhados das casas”. E tudo isso no período de duas a três semanas, ao passo que aquele que orquestrou tudo, o ativista político Piotr Stiepanovitch Vierkhoviénski escapa. É verdade que um leitor apressado (algo semelhante àqueles que já dão como certa a vitória de Lula na próxima eleição) poderia supor que com um novo governador e o sumiço de Piotr, além da prisão de alguns de seus cúmplices, a província teria voltado à normalidade; e muito embora esse seja o fim romance – como diz o narrador na “Conclusão”: “Hoje, três meses depois daqueles acontecimentos, a nossa sociedade está em paz, recuperou-se da sua doença, curtiu o seu lazer” – paradoxalmente, não parece ser o seu prognóstico. É surpreendente o quanto Piotr se aproxima de Bolsonaro. Como se a destruição propagada pelo personagem clandestinamente na província pudesse ser, em alguma medida, análoga à destruição propagada por Bolsonaro na condição de autoridade política máxima desse nosso pandêmico e catastrófico solo nacional.

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Para qualquer leitor de Os demônios, não é difícil perceber por que a escolha desse romance pareceu servir ao objetivo de atacar a esquerda e, inclusive, porque esse ataque poderia ser formulado sob uma perspectiva religiosa. O que não dá para entender, salvo se não ignorarmos a burrice e má-fé, é como uma obra escrita pelo único psicólogo com o qual Nietzsche disse ter tido algo a aprender, poderia servir de artilharia “cultural” a favor de um Estado neoteocrático ou “terrivelmente evangélico”; que, naqueles bons tempos, ao menos relativamente, em que Damares ocupava o posto de protagonista do nosso delírio coletivo, era o que então nos assombrava  (assombro que, como sabemos, continua à espreita, caso da possível indicação de André Mendonça ao STF). Lembremos que o próprio Alvim, antes de ser acometido pela ação satânica, andava por aí a dar testemunhos sobre como havia sido curado fisicamente e ressuscitado espiritualmente pelo Cristo dos neopetencostais. Não é preciso ser vidente para antever que ele pretendia se valer de Os demônios como panfleto para esse tipo de testemunho – que, no seu caso, diga-se o que se disser, foi bastante próspero, já que logo de cara, lhe garantiu o posto de renascentista oficial do Estado, com o orçamente de 3,5 milhões de reais para aquela que seria a sua magnum opus; o problema foi que como se prenúncio do pum do palhaço de Regina Duarte não aguentou, se lambuzou. Estranho Fausto.

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Mas não adentremos aqui a seara psicodélico-religiosa, restrinjamo-nos à político-literária. Pois o fato é que, em Os demônios, é retratado artisticamente um crime político que então havia sido recém cometido por um grupo de radicais, que na Rússia da época, eram chamados de niilistas, mas que hoje, atualizado o vocabulário, poderiam ser classificados como terroristas ou ainda agentes da extrema-esquerda. Pois se de um lado, o personagem Piotr Stiepánovitch tem como protótipo o deveras existente Serguei Netchaiev – líder da célula clandestina que perpetrara o crime representado artisticamente no romance –, de outro, não foram poucos os que viram no mesmo personagem uma antecipação de ninguém menos do que Stalin. Na sua amada mãe-Rússia, Dostoiévski foi e é cantado por muitos como profeta sobretudo por essa sua suposta antecipação do stalinismo. O tipo psicológico e os propósitos políticos do personagem Piotr Stiepanovitch foram identificados pelos dissidentes da União Soviética como esclarecedores de Stalin e seu governo.

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E aí é que está. Pois esse gigante da literatura nos faz vislumbrar o limiar onde, como disse um de seus personagens, les extrémitis se touchent. Alvim provavelmente “esqueceria” justamente do que não pode ser esquecido: que o personagem Piotr Stiepánovitch, embora uma representação artística do líder de um grupo identificado na Rússia czarista da época como socialista, confessa, em determinado ponto, não ser ele mesmo um socialista, mas um vigarista. “Quer dizer que você não é francamente um socialista, mas um político egoísta?” pergunta estupefato aquele para quem se confessa, ao passo que um Piotr cheio de entusiasmo responde: “Um vigarista, um vigarista. Você se preocupa que eu seja assim?”. Ora bolas, convenhamos: quem hoje se surpreende com a constatação de que Jair Messias Bolsonaro não é nem direita, nem conservador e, muito menos, um liberal? E de outro lado, quem hoje não se preocupa por ele não ser assim? Por ele ser, como disse seu duplo literário, um vigarista, um vigarista?

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Piotr é um vigarista, porque o seu objetivo final é unicamente angariar para si o poder, um poder inaudito, ainda que, dada a sua mediocridade incontornável, só possa ser do tipo mais abjeto. Mas “para que precisa de poder?” – Piotr é inquirido. E a sua resposta, se aplicada a Bolsonaro, é onde a porca torce o rabo.

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