#FlautaVertebrada: no fim de uma longa jornada de trem atrás de uma estrela cadente diferente, a recorrência do natal em um cenário de favela

por Andri Carvão
Depois de chacoalhar
no trenzão da FEPASA
por duas horas
do centro até a quebrada,
José, com hálito de aguardente,
finalmente pegou
na tramela da porta.
Pensou ter visto
uma estrela cadente,
mas eram fogos de artifício
sinalizando a chegada
do bagulho na favela.
Foi quando ouviu o choro
e empurrou a porta.
O menino nasceu saudável
de parto normal.
A parteira só acompanhou.
Maria estava exausta,
mas muito feliz com a criança
em seus braços,
um pouco arroxeada
e lambrecada de sangue
e placenta como gel
nos cabelos ralos. Lá fora
o cachorro magro
cheio de pulgas e sarna,
latindo e balançando o rabo.
Como a porta estava entreaberta
– casa de pobre
não precisa de tranca –
eles entraram:
o pastor, a professora
e o traficante; todos os três
representantes da comunidade.
Trouxeram a palavra,
a palavra e a palavra.
Depois foram embora
prometendo voltar.
A casa humilde
de tábua e compensado,
de chão batido e móveis doados.
José e Maria
sorriram abraçados
ao Jesus Cristinho,
a única riqueza do barraco.
Andri Carvão cursou artes plásticas na Escola de Arte Fego Camargo em Taubaté, na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e na EPA – Escola Panamericana de Arte [SP]. Graduando em Letras pela Universidade de São Paulo, o autor tem diversas publicações online e antologias. Um Sol Para Cada Montanha [Chiado Books, 2018], Poemas do Golpe [editora Patuá, 2019] e Dança do fogo dança da chuva [editora Penalux], entre outros. Escreve n’O Partisano quinzenalmente às terças-feiras.