Na disputa pelo mercado mundial, as grandes potências recorrem a grandes projetos estatais de infraestrutura para se contraporem à China

por Alexandre Lessa da Silva
O capitalismo é um sistema em constante mudança, de tempos em tempos passa por processos gigantescos de reestruturação com o objetivo de se modificar para que possa continuar mantendo a sua sociedade hierarquizada em classes e sua forma de exploração das classes mais baixas. Mas não é apenas a população de um determinado país que é hierarquizada em classes. Os países, dentro do sistema capitalista, também sofrem uma hierarquização entre países pobres e ricos. Assim, o capitalismo global percebe algo que os socialistas e a esquerda em geral já perceberam há muito tempo, a presença dos Estados deve ser forte, pois já não há como sustentar a ideia de um “estado mínimo” no mundo real.
Três forças lideram o mundo nessa virada de mesa: Estados Unidos, China e União Europeia. Duas delas, assumidamente capitalistas, a outra (China) com um tipo de economia com uma presença muito mais forte do Estado que as outras duas, mas em que ainda assim encontramos a presença de uma hierarquia de classes em seu território. Apesar de todas essas diferenças, a China hoje joga, e muito bem por sinal, o jogo do capitalismo global e disputa a liderança do mercado mundial com Estados Unidos e União Europeia. Cada uma dessas três forças apresentou um grande projeto de infraestrutura baseado, principalmente, no financiamento estatal e na liderança pública de tais investimentos. Aqui, em O Partisano, os projetos de China e Estados Unidos já foram abordados, com um artigo específico para tratar do embate entre ambos. A Nova Rota da Seda (China) e o Build Back Better Act (EUA) são projetos gigantescos com os respectivos Estados à frente de cada um deles. O projeto estadunidense é maior e mais voltado para o desenvolvimento interno dos Estados Unidos, enquanto o chinês tem uma visão mais global e, por isso, o investimento é dividido em uma gama enorme de países que possam contribuir com o abastecimento da China. Portanto, é preciso falar do projeto bilionário da União Europeia, a iniciativa Global Gateway.
A Ponte Global (tradução da própria Comissão Europeia, apesar de “Portal Global” ou “Portão Global” ser mais apropriada), segundo a União Europeia (UE), surgiu a partir da pandemia de Covid-19, que “revelou de forma implacável os efeitos das infraestruturas incompletas”. Assim, “a falta de ligações digitais, a perturbação das cadeias de abastecimento e a escassez de produtos médicos têm enormes consequências humanas e econômicas”, apontando para a necessidade de investimentos pesados nesses setores. “Além disso, a complexidade crescente do panorama mundial evidenciou o interesse vital da UE em garantir que as ligações e as redes mundiais se desenvolvam respeitando valores e padrões democráticos elevados, assegurando condições de concorrência equitativa”. Portanto, a pandemia acabou por despertar a importância de investimentos capitaneados pelos Estados membros da UE, como ocorreu com os Estados Unidos, segundo as palavras da própria UE. Entretanto, a Nova Rota da Seda e o crescimento chinês tem, fora de toda retórica, uma importância muito maior para fazer despertar essa iniciativa europeia, assim como a agenda estadunidense Build Back Better. Resumindo, a Global Gateway é a resposta europeia para o grande salto chinês dentro do mercado globalizado capitalista.
Como a Nova Rota da Seda, a Global Gateway tem um escopo mundial, pois “visa mobilizar até 300 bilhões de euros para investimentos a realizar entre 2021 e 2027 a fim de contribuir para uma recuperação mundial duradoura, tendo em conta as necessidades dos nossos parceiros e os nossos próprios interesses”. Dessa forma, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, já afirma que serão investimentos sustentáveis, materiais e não materiais, “nos domínios digital, climático e energético, nos transportes, na saúde, na educação e na investigação, bem como na criação de um ambiente favorável, que garanta condições de concorrência equitativas”. Como é possível perceber, as palavras “democrático(a)”, “sustentabilidade” e “equitativa(o, os)” aparecem com uma frequência muito maior do que a de costume, pois dão a base ideológica do projeto. Analisando essas palavras, percebe-se que o uso repetido de palavras derivadas de “democracia” representam uma oposição proposital ao modelo político chinês, quase como se afirmassem que a China não é uma democracia e, portanto, cuidado com ela. Já “sustentabilidade” remete ao ideal verde defendido pela Europa e pelo projeto de Joe Biden. Aliás, “verde” também é uma palavra que ocorre com frequência quando a Comissão Europeia fala de seu projeto. “Equidade” certamente não é a palavra mais verdadeira usada, mas tem uma importância crucial no discurso da UE. O capitalismo, em seu atual estágio de desenvolvimento, mostra-se inviável. Não é possível sua existência com a atual taxa de desigualdade entre os indivíduos, uma vez que isso, a curto prazo, representa a própria destruição do capitalismo. É hora de repensar, portanto, o caminho que esse capitalismo percorre.
Digitalização, energia limpa, transporte, saúde, educação e pesquisa são os pilares de investimento do novo projeto da UE. Os 300 bilhões de euros serão investidos principalmente nesses campos. Investimentos em cabos de fibra ótica, comunicação via satélite, compartilhamento de dados, estruturação de nuvens e desenvolvimento de inteligência artificial são os principais tópicos na área de digitalização. Integração dos sistemas de energia, aumento de energia renovável, impulsionar a produção de hidrogênio renovável e outros combustíveis renováveis ganham destaque na área de energia limpa. Na área de transporte, investimentos em estradas, portos, ferrovias, aeroportos e fronteiras, sendo provavelmente a área de maior competição em relação à China. A área da saúde será contemplada na ajuda a países a desenvolver vacinas e expandir suas cadeias de fornecimentos farmacêuticos. Os investimentos em educação proporcionarão o aumento do programa de intercâmbio Erasmus+ e a transferência de talentos para a Europa.
“A Ponte Global e a iniciativa dos Estados Unidos «Build Back Better World» reforçar-se-ão mutuamente”, palavras da própria Comissão Europeia. Portanto, Estados Unidos e Europa já traçaram suas estratégias para o enfrentamento do crescimento chinês em âmbito global. Como demonstrado em outro artigo, o Build Back Better é um projeto voltado principalmente para dentro dos Estados Unidos, o que faz com que a Global Gateway seja voltado para o restante do mundo, principalmente o mundo não desenvolvido. Dessa forma, Estados Unidos e Europa entram em disputa direta com a China na luta pelo domínio da economia mundial.
A partir do primeiro governo Lula, o Brasil começa a valorizar as relações com países africanos, parceiros da América Latina e outros países que não estão na lista dos mais ricos. A preocupação com a geopolítica e o investimento em países considerados pobres sempre estiveram na preocupação de seus governos, demonstrando um conhecimento da roda econômica muito maior do que os economistas liberais. Esses três grandes projetos das três maiores forças econômicas acabam por dar razão a Lula e Dilma e, por consequência, demonstrar o quão errada está a extrema direita que se encontra no poder. O mundo se abre para ideias como as de Lula e o Brasil, pelo que indicam todas as pesquisas, também o faz, pois sabe que é a única esperança de ainda continuarmos a ter um país.