Não existe possibilidade de construção da democracia (nem mesmo de autêntico liberalismo político) sem uma radical transformação das nossas estruturas

por Pedro Fassoni Arruda
O texto abaixo é a quarta parte da série Sobre o liberalismo.
1. Um dos maiores erros de quem defende o liberalismo no Brasil é acreditar que ele pode funcionar exatamente como nos EUA ou no Reino Unido, por exemplo. Os defensores dessa ideia acreditam que é possível “transplantar” ou copiar um modelo que “funciona muito bem por lá”, o que já é bastante questionável…
2. Comecemos pelo liberalismo político (tratarei do liberalismo econômico na parte 5). Países como EUA, Inglaterra e França passaram por revoluções burguesas radicais. Na Revolução Francesa de 1789, todo o edifício do Antigo Regime ruiu e deu lugar a uma ordem completamente diferente. Não houve uma “transação” envolvendo burguesia de um lado, e nobreza/aristocracia de outro: praticamente todos os privilégios das antigas classes dominantes foram destruídos, por meio de uma revolução sangrenta, onde a reação foi duramente sufocada juntamente com os representantes da grande propriedade. A propósito, vocês conhecem a “Marselhesa“, o hino nacional francês? Por meio dessa canção, os franceses se vangloriam da sua história de lutas e conclamam o povo a pegar em armas e derramar o sangue dos seus inimigos…
3. Nos EUA, aconteceram dois episódios importantes. O primeiro foi a Guerra de Independência, entre 1776 e 1783. Inspirada nas ideias iluministas e liberais (começando por John Locke e o “direito de resistência contra a opressão e a tirania”), a população das colônias britânicas da América do Norte pegou em armas e conquistou a Independência, destruindo as tropas britânicas. Mas faltava abolir a escravidão, o que só viria a acontecer em 1865, no final de uma sangrenta guerra civil que deixou quase um milhão de mortos. As tropas dos Estados sulistas foram derrotadas, os escravos foram libertados, FOI REALIZADA UMA REFORMA AGRÁRIA no governo de Abraham Lincoln e muitos antigos proprietários de escravos tiveram suas cabeças decepadas, praticamente o mesmo destino da aristocracia e da nobreza na França.
4. No Brasil, nada disso aconteceu. Nossa revolução burguesa aconteceu “pelo alto”, sem a mínima participação das classes subalternas. Tivemos que pagar pela nossa “Independência”, contraindo um empréstimo junto aos banqueiros ingleses para indenizar Portugal pela perda da sua mais importante colônia, como forma de obter o reconhecimento das potências da época. Quando a escravidão foi abolida, não houve qualquer indenização aos escravos, e a única “reparação” foi feita para beneficiar justamente os proprietários! Não fizemos a reforma agrária, e o latifúndio continuou sendo o eixo da acumulação no Brasil. A burguesia não destruiu os representantes da grande propriedade, como na França ou nos EUA, pelo contrário: empresários urbanos e grandes proprietários de terra fizeram tudo “pelo alto”, e os primeiros ainda se tornaram caudatários dos interesses dos segundos. Em 1930, repetiu-se o que aconteceu em 1822 e 1888/89, e os mesmos personagens de sempre “fizeram a revolução antes que o povo a fizesse”, segundo aquela frase que se tornou célebre.
5. Nas revoluções burguesas “clássicas”, a ruptura foi muito mais radical do que nos países que hoje mantém a dependência no plano econômico. Na dialética superação-conservação, quase nada foi preservado da velha ordem social. Já no Brasil, os elementos de preservação sobrepuseram-se aos de superação. A nossa triste herança colonial e escravocrata pode ser observada em praticamente todas as reentrâncias da vida social nos dias de hoje. No Brasil, é ilusão acreditar que o Parlamento (Congresso Nacional) poderá funcionar como o Parlamento britânico, sem antes remover todo o entulho que nos foi legado pelos agentes da reação. Nossas classes dominantes já mostraram que são capazes de sacrificar a democracia sem hesitar, se isso for visto como uma ameaça aos seus privilégios de classe (1964 e 2016 estão aí para provar). O liberalismo pode ser muito bonito na teoria, mas ele depende de uma série de circunstâncias que não dependem da nossa vontade…
6. Como pensar nos direitos humanos num país onde a polícia tem uma estrutura fortemente militarizada, e as Forças Armadas são o “quarto poder” que se intromete em assuntos de natureza estritamente política? Como o Poder Judiciário pode ser imparcial, se os juízes são recrutados e doutrinados segundo a mesma lógica do patrimonialismo e do coronelismo? Como contar com um governo ou um legislativo “responsivos”, como querem os liberais, diante da enorme influência dos setores mais retrógrados da sociedade? Sério que tem gente que acredita que podemos construir uma democracia perdoando os criminosos da ditadura, e fazendo com que eles nunca paguem pelo que fizeram? Tem alguém achando que a democracia é algo que cai do céu, e ignorando o fato incontestável de que a violência foi a parteira de todas as grandes transformações sociais?
7. Não existe possibilidade de construção da democracia (nem mesmo de autêntico liberalismo político) sem uma radical transformação das nossas estruturas. A questão é que nenhuma fração da burguesia brasileira está disposta a aceitar essa mudança. A mudança virá de baixo, ou não acontecerá. Uma autêntica revolução brasileira deverá ser necessariamente socialista.