Existe afeto entre pessoas jurídicas? E solidariedade de companhias às vítimas de Covid-19? Segundo o Jornal Nacional, a resposta é sim

por Danilo Matoso
Era noite de uma terça, 14 de abril. Aquela edição do Jornal Nacional só trazia tragédias. A epidemia de Covid-19 avança a passos largos: mais de 25 mil casos confirmados no Brasil, 204 mortos num único dia, explosão de casos em Fortaleza, governo tenta não pagar o Auxílio Emergencial, previsão de recessão econômica global. A apresentadora Renata Vasconcelos abre o último bloco com um sorriso e um semblante de enternecida esperança: “a pandemia do coronavírus provocou uma infinidade de ações solidárias no Brasil: de cidadãos e de empresas. Os exemplos de cidadãos solidários você vê quase todo dia por aqui, com nome e sobrenome. Já as iniciativas das empresas, a gente tem apresentado como sempre fez: sem mencionar as marcas delas. Mas a partir desta terça (14), e enquanto durar a pandemia, o Jornal Nacional vai mudar isso, porque para superar um desafio tão grande é importante mostrar o que muitas e muitas empresas e empresários têm feito nesse período. Você vai conhecer algumas dessas iniciativas”.
Foi o início da série Solidariedade S/A, uma série de informes publicitários no telejornal com maior audiência do país sobre ações e doações das grandes empresas relativas ao combate à pandemia. Com trilha sonora e locução típicas de vídeos promocionais e campanhas eleitorais, a série já tem mais de 50 “reportagens” que buscam mostrar o lado humano das corporações, às vezes coroadas com alguma transmissão low tech do CEO da empresa feita de seu próprio celular com olhos marejados de emoção no isolamento doméstico. Mais chapa branca impossível.
Uma corrente do bem
A estrela do primeiro programa foi uma doação de R$ 1 bilhão do Itaú Unibanco ao projeto “Todos pela Saúde”. O presidente do grupo explicou a caridade “o Brasil é a nossa casa”. Bradesco e Santander também se uniram para doar quase R$ 300 milhões para a importação de equipamentos médicos. É muito dinheiro, mas essas cifras são mero troco de pão para essas corporações. O lucro líquido do Itaú Unibanco no ano passado foi de mais de R$ 26 bilhões, o segundo maior de sua história. O gigante financeiro é a maior empresa do país em valor de mercado – R$ 342,1 bilhões, enquanto o Bradesco vale R$ 259,6 bilhões e o Santander meros R$ 176 bilhões.
O projeto “Todos pela Saúde” é gerido pela Fundação Itaú. Ou seja: o banco doou os recursos para si mesmo. Uma equipe de especialistas chefiados pelo médico Paulo Chapchap – porta-voz da iniciativa e diretor-geral do Hospital Sírio-Libanês. Justiça seja feita, a verba foi usada na compra de equipamentos de proteção – como máscaras – e de tratamento aos enfermos de Covid-19 – como respiradores e monitores.
A Ambev, segunda maior empresa do país – R$ 256,7 bilhões –, apareceria dois dias depois, com o programa “Juntos à distância”, somando R$ 110 milhões em doações. Foi bem menos generosa que os bancos. Na mesma edição do Solidariedade S/A, a XP Investimentos mostraria sua doação de R$ 30 milhões no programa “Juntos Transformamos”. Seu CEO, Guilherme Benchimol, falou que “talvez, se cada um fizer a sua parte, cada um vai inspirando a pessoa do lado e isso vira uma corrente do bem que acaba se espalhando”.
Com solidariedade, Covid, com tudo
Algo mais além da “corrente do bem” andou se espalhando, porém. Como todas as grandes empresas, essas companhias forçam a barra tanto quanto podem pela manutenção do expediente presencial de seus funcionários. Afinal, o dinheiro e as mercadorias precisa continuar circulando. Os casos de teletrabalho vêm sempre acompanhados da ameaça de que o “fique em casa” seja permanente. Fechados em ambientes com muita gente e amplo atendimento ao público, os bancários são especialmente expostos à Covid-19 e a queda de braço entre sindicatos e banqueiros é constante.
Como já vimos n’O Partisano, o presidente da XP Investimentos comemoraria uma vitória parcial da corrente do bem duas semanas depois, quando o país contava então cerca de 10 mil mortos por Covid-19: “o pico da doença já passou, quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo”. O pior já tinha passado – que o digam as mais de 50 mil pessoas mortas entre a entrevista e hoje, a maioria pobres.
Mas mesmo com tanta bondade, a pandemia faz cada vez mais vítimas por aqui. Ao contrário de praticamente todo o resto do mundo, as curvas de contágio e de mortes no Brasil só aumentam. Isso porque não basta “cada um fazer sua parte”. Saúde pública – assim como tudo o que diz respeito à sociedade – não é uma questão de consciência individual, mas de política de Estado. Como se sabe, o Governo Federal tem uma política deliberada de manter o país funcionando a todo vapor em plena pandemia. É um caso único no mundo em que, até hoje, o chefe de Estado não apenas se omite sistematicamente como combate e boicota energicamente as tentativas estaduais e municipais de mitigação da doença. Se o indivíduo pouco pode, que dizer das classes sociais, tomadas em bloco? É possível uma espécie de empatia corporativa? Uma solidariedade empresarial?
Pela vida… das empresas
Reza o bordão popular que “não existe afeto entre pessoas jurídicas”, mas a série sob encomenda que o JN despeja todo dia está aí para mostrar que não é bem assim. Não apenas o empresariado tem sentimentos como também o têm as sociedades anônimas – as S.A.s. O empresariado mais diretamente ligado ao governo parece concordar com tal visão humana das corporações. Três semanas depois, acompanhados de Bolsonaro e Paulo Guedes, um grupo de empresários e representantes de associações da alta burguesia nacional faria uma visita surpresa ao Supremo Tribunal Federal (STF) para pressionar a Côrte a cassar a autonomia dos estados e municípios no combate à pandemia, permitindo a retomada das atividades comerciais. Synésio Batista, testa de ferro profissional hoje à frente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), seria comovente: “haverá morte de CNPJs”.
Agora está explicado. Salvemos as vidas de nosso indefesos CNPJs, nossas corporações que orquestraram o golpe de 2016, que financiaram a eleição de Jair Bolsonaro, que pressionam dia a dia os governos locais para reabrir o comércio, para manter “a economia” funcionando, “morra quem morrer”, como sintetizou um legítimo exemplar de Odorico Paraguaçu , ou como tantos empresários fizeram questão de reforçar desde o início da pandemia, quando encomendaram ao governo Federal a campanha “o Brasil não pode parar”.
A equação é clara e o saldo geral é certo: não há qualquer Solidariedade S/A possível. Uma companhia com ações na Bolsa tem que gerar lucro. Um acionista contemporâneo compra e vende o que tem com base em análise gráfica, e não numa análise do que a empresa faz ou deixa de fazer pela sociedade, pelo meio ambiente, por seus funcionários. Uma companhia é parte de um sistema desumano, em que a propriedade privada comanda a vida dos vivos e o objeto se torna sujeito.
Um sábio socialista de outrora aconselhou: “quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita”. Isso vale aqui nos dois sentidos. Que os admiradores desses filantropos não saibam o que fazem suas empresas no campo político. Que os seus acionistas não saibam que andaram fazendo demagogia à custa de seus lucros. E assim a roda continua girando.
Independentemente das boas intenções de seus às vezes empáticos CEOs – que dizem respeito mais à publicidade institucional – o Capital é a grande força que empurra o presidente, os governadores e os prefeitos a empreender a política de “retomada” e “reabertura” que hoje lança todos às ruas. É ele que dosa o noticiário para obter a normalização dos milhares de mortos – que poderão chegar à casa dos milhões – assim como normalizam os as centenas de milhares de mortos pela violência urbana em nossas periferias. Isso é parte de um sistema. Quer queiram ou não, são eles os patrocinadores do genocídio
Esses canalhas vivem enviando e-mails pra mim. Eu respondo mandando TNC.