O BBB dá uma aula sobre o que acontece com as lutas dos oprimidos travadas à luz do liberalismo

por Bibi Tavares
Muita gente tem acompanhado mesmo que indiretamente a 21ª edição do Big Brother Brasil, aquele programa conhecido por propagar muito conteúdo machista, racista e LGBTfóbico; que transborda preconceito regional, de classe, humilhação, tortura psicológica e ausência de relevância — esse último item pode ser discutível, a nível de entretenimento, já que gosto é que nem cy. A insistência da Globo em levar ao ar um programa com essas características mostra que a necessidade de se consultar com um psicólogo não se limita somente aos participantes. De qualquer forma, essa edição mostra algumas coisas importantes sobre a militância, a primeira delas é que fazer parte de um grupo historicamente oprimido não impede ninguém de ter atitudes constantemente abusivas, egoístas e preconceituosas. Segundo, por passar em TV aberta e num horário relativamente cedo, esse tipo de programação é o primeiro contato que muitos jovens têm com práticas não conservadoras, mais “libertárias” e atraentes. Por último, a dificuldade que é explicar e defender as controversas “pautas identitárias” para o cidadão comum.
Na edição anterior, a pauta do racismo foi colocada em evidência por ter participantes negros falando de suas vivências de maneira mais equilibrada, sem fazer uma caricatura do que é a luta antirracista — e de alguma forma levando pra dentro das casas esse debate. Já na edição atual, parece que a direção do programa abriu um saco de lixo hospitalar e despejou na casa.
Militante não é um cristalzinho intocado pelo capitalismo
Escárnios à parte, subcelebridades como Karol Conká e Projota, além de anônimos como a milituda e “fenotipicamente negra” Lumena, deram uma verdadeira aula sobre como o liberalismo e a grande mídia são capazes de fazer alguém que levanta a bandeira de determinada causa ficar completamente biruta, intolerante e egoísta. E aqui não cabe generalizar ou zombar de uma mulher negra agindo no ápice do desequilíbrio e mau caratismo, mas expor um fenômeno produzido dentro do capitalismo: as lutas das minorias travadas à luz do liberalismo. A ruptura com o coletivo para a defesa do individual é forte e sorrateira, fácil de acontecer quando a estrutura da sociedade verte desigualdades de classe.
É comum que a imagem de diversos nomes do campo progressista esteja associada ao combate à intolerância e opressão, mas numa sociedade onde a estrutura é justamente escorada na intolerância, opressão e tantas outras formas de poder, não é incomum que mesmo os oprimidos ajam, em menor grau, mas ajam, como opressores.
O poder de manipulação da grande mídia, do mercado e do imperialismo é tão potente que mesmo o mais aparentemente “desconstruído” vai cair em alguma cilada. Aqui, também não cabe isentar essas pessoas e suas ações só porque fazem parte do grupo x ou y, a representatividade não deve ser levada adiante a qualquer custo, mulheres, negros e LGBTs também estão nas altas camadas da burguesia e podem oprimir tanto quanto um homem hétero, branco e cis, haja vista o histórico de pessoas como Barack Obama, Hillary Clinton, Margaret Thatcher, Fernando Holiday, Míriam Leitão, Marine Le Pen, Kanye West — esse incrivelmente é rapper —, todos esses nomes tem relação direta com a manutenção do capitalismo e conservadorismo.
Karol Conká, Lumena e Projota, além de terem sido escolhidos a dedo pela emissora mais manipuladora do país para deslegitimar e inviabilizar um aprofundamento popular dessas pautas, deixando o cidadão comum completamente brochado e cheio de ideias destorcidas de senso comum, são um exemplo notório do que significa discutir e aplicar a cartada do identitarismo descolado da luta de classes. A identidade não diz muito sobre o caráter da pessoa, apesar de ser constantemente associada ao campo da esquerda, mas quando raça, gênero e classe se cruzam, a direita sabe que é perigoso.
O reconhecimento nem sempre vem pela via revolucionária
Se reconhecer como mulher, como negro, como LGBT, como membro de um grupo que é historicamente oprimido pode levar tempo e vai depender dos exemplos a que se tem acesso. Então, deve-se perguntar, quantos jovens têm acesso a leituras revolucionárias, mesmo grandes nomes da esquerda como Angela Davis e Frida Kahlo, super popularizadas, para se reconhecer, inspirar-se, informar-se? Basta olhar para o número de jovens sob exposição diário à TV aberta para entender o resultado disso. Por sorte, a Internet abriu caminho para se difundir com mais facilidade ideias revolucionárias, radicais e embasadas na história. Muitas vezes, a porta de entrada vai ser pela militância individual, pela necessidade de “lacrar” como resposta à autoestima deteriorada — e dependendo do grupo que você cai na vida real, como tantos coletivos lacrianes por aí, provavelmente vai ficar chocada quando vir uma Conká agindo como age. Daí, uns seguem assim e outros vão querer se aprofundar no debate de classe.
Quando uma emissora como a Globo coloca propositalmente pessoas chucras, como a tal Kéfera Buchmann, falando de feminismo no programa da Fátima Bernardes, para falar em nome de determinado grupo, pode ter certeza que é objetivando ridicularizar os movimentos de esquerda. Quando vai ser interessante levar em rede nacional alguém que fale de luta de classes?
Gente que fala sobre feminismo, racismo e tantas outras pautas de maneira tão caricata, rasa, deturpada e ignorante, humilhando e debochando em programas de horário nobre num país onde 97% dos domicílios possuem pelo menos um aparelho de TV, chegando a 207 milhões de telespectadores — enquanto usuários da internet somam 169 milhões, é tudo o que os liberais querem. Assim, não é difícil inferir que esses conteúdos vão criar Projotas, Lumenas, Kéferas e uma legião de gente que acredita que o feminismo é você ser superior aos homens e ganhar dinheiro suficiente pra comprar um amontoado de produtos que você não precisa.
Como defender?
Como falar de movimento negro para um cidadão comum, que dispõe de pouco tempo para se informar, que o movimento negro é algo legítimo quando o que ele vê é a Karol Conká humilhando outro menino negro, de uma classe social inferior? Ninguém gosta de ser humilhado, atitudes como as que estão sendo transmitidas no BBB são um prato cheio para a direita encher a boca para dizer que a esquerda não consegue fazer o mínimo que se compromete a fazer, tratar com respeito os seus. Assim fica fácil convencer o cidadão de senso comum que a esquerda se resume a um bando de degenerado, sem educação e pronto para oprimir. Assim fica fácil convencer o cidadão de senso comum que votar em gente como o Bolsonaro, que vive fazendo deboche desses grupos, pode ser produtivo e que todo o resto é mimimi.
A esquerda tem uma dificuldade imensa em traçar limites, saber quando é a hora de acionar o modo Sodoma & Gomorra e quando é a hora de sentar pra dialogar com fiéis de igreja. É de extrema importância deixar registrado que esse caminho sujo que a grande mídia usa para deturpar movimentos é feito para tirar toda a credibilidade das lutas históricas; para fazer a cabeça de uma parcela da população que gasta horas em transporte público e que tem na televisão um lazer. E é incrível como muita gente da esquerda, inclusive os famosinhos, não conseguem se impor diante das sacadas da direita.
Programas como o BBB, novelas, jornais e tudo mais que se passa em TV aberta com discurso liberal vão continuar a tomar o lugar do que deveria ser a principal tarefa dos partidos de esquerda: formação política de qualidade e acessível a todos os públicos e que vá até todos os públicos. Não cabe aqui ficar cagando regras, até porque é notório a injeção de grana que há nesses canais, é uma luta muito árdua pra esquerda competir quando as finanças não vão bem, mas fica aí a sugestão.