Xeque-mate no presidente? Apesar de a imprensa divulgar que o projeto pretende essa implantação em 2026, nada está decidido

por Alexandre Lessa da Silva
Teoricamente, a origem do termo de “semipresidencialismo” é, em geral, traçada até Maurice Duverger e sua obra Échec au Roi, expressão francesa para dizer que o rei, no xadrez, está em xeque. Duverger, nessa obra de 1978, define um sistema semipresidencial através da “coexistência de um governo de tipo parlamentar e de um chefe de estado de tipo presidencial”. A obra de Duverger, no entanto, não apresenta uma criação teórica do conceito, mas apenas cria um nome para uma descrição do mundo real, no caso do livro em questão, da Quinta República Francesa, apesar do próprio Duverger reconhecer que o semipresidencialismo já havia existido, anteriormente, na República de Weimar. Todavia, as origens do semipresidencialismo podem ser trilhadas, teoricamente, até Max Weber e, praticamente, até a Roma Antiga, conforme demonstrado pelo próprio sociólogo alemão. Em outras palavras, a ideia já existia, mas o nome só surge com Duverger.
O semipresidencialismo é, basicamente, uma mistura de dois sistemas políticos, o presidencialismo e o parlamentarismo, que coloca o presidente como chefe de Estado e o primeiro-ministro como chefe de governo. O presidente, dentro do sistema em questão, é escolhido através do voto popular, enquanto o primeiro-ministro é apontado pelo presidente ou pelo parlamento, conforme o modelo adotado. Assim, no semipresidencialismo francês, o presidente é a figura mais forte, sendo ele o responsável pela nomeação do primeiro-ministro, como fez recentemente Emmanuel Macron ao nomear Jean Castex como primeiro-ministro. Por outro lado, em Portugal, o semipresidencialismo nasce depois, na década de 1970. Apesar de ter muitas semelhanças com o modelo francês, o primeiro-ministro português é a figura de mais destaque no cenário político. Portanto, não há um modelo único de semipresidencialismo, o que o torna um excelente candidato para ser modelado de acordo com os interesses de quem o define.
Recentemente, o ministro do STF, Gilmar Mendes, reacendeu o debate sobre a implementação do semipresidencialismo no Brasil, uma ideia já apresentada, anteriormente por ele mesmo e antes, ainda, pelo seu colega, Luis Roberto Barroso. Barroso chegou a afirmar que com o semipresidencialismo neutralizar-se-ia dois problmeas crônicos do país, a “presidência imperial, plenipotenciária e autoritária” e a instabilidade política do governo. Gilmar Mendes, por sua vez, destaca que esse modelo teria a vantagem de ser “uma intervenção menos radical” que o parlamentarismo, talvez em função do parlamentarismo e da monarquia terem sido rejeitados no último plebiscito sobre o assunto. Nesse plebiscito, de 1993, a maioria dos eleitores brasileiros que votaram escolheu a república como forma de governo e o presidencialismo como sistema de governo. Aliás, o semipresidencialismo nem sequer chegou a ser uma opção, o que oferece uma pequena e forçada brecha para que a proposta seja feita, apesar da escolha já ter sido feita.
O semipresidencialismo já tem um imenso secto dentro da parte da classe política que está à direita do espectro político. Na Câmara, por exemplo, a deputada Margarete Coelho (PP-PI), relatora da Lei 6764/02, que revogou a Lei de Segurança Nacional, afirmou: “A adoção do regime semipresidencialista é um desdobramento natural da nossa Constituição, que foi elaborada para um regime parlamentarista, mas os constituintes acabaram adotando o presidencialismo”. Também segundo Coelho, uma das principais interlocutoras de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, sobre o tema, políticos como José Sarney e Michel Temer e ministros do STF, como Barroso e Gilmar, já articulam a adoção do semipresidencialismo, em conjunto com Arthur Lira, que chegou a afirmar que “o Brasil não deve se acostumar a desestabilizar a política em cada eleição. Não podemos fazer isso. Precisamos, talvez, alterar o sistema do Brasil para um parlamentarismo”.
Líderes do PSD e do MDB também já começam a apoiar a adoção do novo sistema proposto. Baleia Rossi, presidente nacional do MDB, já disse que é simpático à ideia, enquanto Gilberto Kassab, presidente do PSD, analisa que a evolução do projeto depende de uma reforma política nos partidos. Enquanto a direita, incluindo o Centrão, procura defender o semipresidencialismo, a esquerda já rejeita a discussão da questão. Bohn Gass (RS), líder do PT, por exemplo, asseverou que a instabilidade e insegurança política são resultantes do jogo político e de usar esse jogo para não cumprir o que está na lei. Gleisi Hoffmann também se demonstra contrário, e diz que a instabilidade será gerada “com esse papo de semipresidencialismo”, já prevendo problemas futuros caso essa proposta siga em frente. Mas, a resistência ao semipresidencialismo também é encontrada no Supremo. O ministro Ricardo Lewandowski disse que “o debate sobre a adoção do semipresidencialismo, que surge às vésperas das eleições de 2022, lembra a polêmica que levou à implantação do parlamentarismo antes da posse de João Goulart [Jango] na Presidência da República em 1961, com as consequências que todos conhecemos”. Essa afirmação está coberta de razão, uma vez que a história comprova o que disse Lewandowski, com a tentativa de golpe parlamentarista em 1961, sistema que o povo rejeitou logo em seguida, com o plebiscito de 1963.
A proposta da implantação do semipresidencialismo ainda está, como já foi afirmado, muito aberta. Apesar de a imprensa divulgar que o projeto pretende essa implantação em 2026, nada está decidido, o que pode fazer com que a direita tente empurrar goela abaixo esse sistema para deter uma vitória da esquerda na próxima eleição presidencial, dando continuação ao processo do golpe que já leva anos. Mesmo para 2026, o semipresidencialismo fortaleceria os membros do Poder Legislativo, em especial o Centrão e o restante da direita, já que sempre formaram a maioria no Congresso.
Como foi dito acima, o semipresidencialismo seria extremamente favorável à direita e limitaria os poderes do presidente eleito. Apesar de não existir uma proposta definida, é de conhecimento público a proposta feita por Gilmar Mendes e que foi publicada, por engano, pelo Senado, no final de 2017. Segundo a proposta desse ministro do Supremo, há uma nítida divisão entre chefe de Estado, o presidente, e chefe de governo, o primeiro-ministro, escolhido pelo presidente. Apesar de o presidente ser responsável pela nomeação do primeiro-ministro, a maioria das funções que hoje são do presidente estariam nas mãos do primeiro-ministro, fortalecendo assim o Legislativo e quebrando com o atual equilíbrio de forças, pelo menos do ponto de vista formal, entre os poderes da República. Ainda, segundo essa proposição, Lula não poderia nem sequer ser candidato, uma vez que estaria vetado que uma mesma pessoa fosse presidente por mais de dois mandatos, consecutivos ou não.
“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”, como disse Marx em seu 18 Brumário. Assim como em 1961, tentam continuar golpeando a esquerda atacando o presidencialismo. Esse ataque, em forma de semipresidencialismo, fortalece o Legislativo de maioria tradicionalmente de direita, desrespeita a vontade do povo que, através de um plebiscito, escolheu o presidencialismo como sistema de governo e, ainda, subtrai o poder das mãos do povo, uma vez que ele já não mais escolhe diretamente a chefia do governo. Pior ainda, a proposta em questão pode afastar o principal nome da esquerda, Lula, de uma disputada pela presidência e, mesmo que não o faça, pode transformá-lo em um chefe de Estado com poderes mais limitados que a rainha da Inglaterra. É evidente que algo como isso seria extremamente interessante para a classe dominante, assim como para os Estados Unidos. Aceitar Lula na Presidência, mas praticamente sem poderes, seria a realização do american dream em relação ao Brasil, já que Biden afastaria a extrema direita bolsonarista, tornaria inexpressiva a esquerda brasileira e conseguiria colocar no poder a direita tradicional, ela mesma a grande responsável por dar início a toda instabilidade no país.