Só um contorcionismo enlouquecido daria conta de validar um descarado ato de ruptura institucional que na mão grande chegou anunciando o assalto: “Perdeu sua Presidenta, meu irmão”

por Clarice de Oliveira Rosa
Sepultando mais de 75 mil brasileiros e com um especialista em mortes e tortura acampado no Palácio do Planalto, o Brasil sabe perfeitamente que não tem governo. E não tem governo desde 31 de agosto de 2016, quando fomos jogados em um mundo onde seria um alívio se uma ema, uma naja, ou mesmo uma andorinha, ou até uma pulga, assumissem a faixa presidencial e preenchessem o vazio de presidentes da República que vivemos desde então. Seguiríamos, como hoje, à nossa própria sorte. Não há dúvida. Mas ao menos estaríamos aliviados das toneladas de peso morto golpista em decomposição, que hoje, está nos empurrando com vontade para o além-túmulo, sete palmos abaixo do fundo do poço.
O inferno. É este o legado necromântico dos imbecis que foram às ruas relinchar “Fora Dilma”, tangidos pelo berrante da Globo e cutucados pela vara verde-amarela-biliosa dos fascistas brasileiros, amantes de Israel e do comércio Paraguai-gourmet de Miami.
E tinha gente muito boa no meio daquelas micaretas de picaretas! Sim, tinha até juiz! Naquelas legiões com senso de ridículo vencido, amantes de pau-de-arara, um dos heróis era ele, Itagiba Catta Preta! (Infelizmente vou ter que pedir para você não esquecer desse nome).
Catta Preta! O militante verde-amarelo que ampliou os limites da glória da magistratura nacional ao romper com as amarras tradicionalistas de juízes conservadores, que pensavam ser um pouco fora propósito um colega de toga lançar-se às ruas em despudorado ativismo político contra a própria Presidência da República. Mas nosso herói não tinha vergonha nenhuma: não só militava em ações conspiratórias contra a Chefe do Poder Executivo mas sorria de prazer em dar a maior publicidade possível aos seus atos. Em rede social era um daqueles que postava: “Ajude a derrubar a Dilma e volte a viajar para Miami e Orlando, “se ela cair, o dólar cai junto” ou “falta 1 dia, ou você vai ou ‘ela’ fica! #Vemprarua”.
E lembra da ação que anulou a nomeação de Lula como ministro-chefe da Casa Civil de Dilma? Os dados das varas da Justiça Federal em Brasília entenderam por bem despejar aquele decisivo processo justo no colo do queridinho dos amarelos: Itagiba Catta Preta! Puxa, mas que “sorte”, não?
Ciente de que a história sepultaria a pretensão popular por juízes isentos, o homem da Capa Preta não teve dúvidas: tascou a decisão perfeita para uma plateia maravilhada ilegal, imoral e inconstitucional. Impediu a posse do ex-presidente, pois que, em épocas de golpe de Estado não se brinca, e seria um completo absurdo permitir a uma Presidenta da República, eleita por mais de 54 milhões de votos, escolher seus ministros de confiança e tentar governar o país.
A coisa toda é simples: não era Dilma que eles queriam
Dilma não era a presidenta que eles queriam. Não era a presidenta das rachadinhas, dos laranjais, das negociatas, do centrão. Não era a presidenta que iria parar nossas refinarias para entregar petróleo de graça para a Exxon e depois comprar gasolina com o litro mais caro do que um barril de óleo cru; não era a presidenta que iria ficar quietinha e resignada quando descobrisse o olho cumprido das espionagens da CIA na Petrobrás e no Pré-Sal; não era a presidenta dos sonhos, que ajoelharia e prestaria reverente continência para a bandeira listradinha vermelha e branca, permitindo que o desemprego em massa desse às empresas rappyneiras do Vale do Silício um verdadeiro paraíso de gente quase faminta, desesperada por qualquer tipo de trabalho.
Dilma era a Presidenta que o povo um dia sonhou, teve e perdeu.
A Presidenta mulher que olha firme para machos torturadores incapazes de fitarem-lhe os olhos; que fala grosso com gente de poder, dizendo não aos Eduardos Cunha da vida e seus loucos desejos de passar a mão no dinheiro público; que coloca o Presidente dos EUA no seu devido lugar, desmarcando o encontro de cúpula que se seguiria à descoberta da espionagem que deu origem – hoje sabemos – à Lava Jato. Enfim, a mulher de coração valente, que não tem medo de ninguém, que grita com os de cima e sorri para os de baixo, exatamente tudo o que sempre quisemos, exatamente o oposto do que a nossa elite, e seus paga-paus verde-amarelos, aceitariam.
A história insepulta é até singela: o povo elegeu quem os grandões não queriam, eles foram lá e arrancaram na marra a preferida do povo. Sem culpa, sem crime, sem nada. “Tiro porque qui-lo”, diriam os filhos dos quadrilhistas janio-quadristas se ainda conhecessem gramática. Por não fazer parte da quadrilha, Dilma teria que ser atirada para fora do poder o mais rápido possível.
“Eu amo a Constituição Federal”, disse Janaína Paschoal, ao sepultá-la
Até 2016 nós tínhamos um livrinho cuja principal utilidade seria a de limitar o poder dos ricaços que se escondem há 500 anos atrás de governos, juízes e polícias milicianas. Um texto que serviria para trazer alguma esperança de liberdade e garantias aos brasileiros comuns (à exceção das favelas e comunidades que têm constituição própria).
Mas como você, meu amigo, errou rude ao votar na Dilma em 2014, não acatou a vontade daquele pessoal que não gosta de pobre, de preto, de mulher e de índio, e realmente estava convencido de que poderia escolher pra valer o seu presidente, a turma que manda no Brasil e no mundo resolveu sepultar a Constituição da República Federativa do Brasil.
Passaram a mão no bolso, deram quarenta paus para uma advogada meia boca meio pirada, que até então – com a graça do Nosso Senhor do Bonfim – era uma super ilustre desconhecida, e alguns milhões de reais para os digníssimos congressistas de aluguel da atual base de apoio centrona do Bolsonaro. Aí é tiro certo: derrubam quem eles querem, na hora que decidirem. E se for mulher, mais fácil ainda! Dá para chamar de histérica e sem “tato político”. Você sabe: aquele “tato” usado para contar notas e distribuir cargos aos homens de bens, ou hoje, de farda.
José Eduardo Cardoso, advogado da ex-presidenta, ainda alertava: se passar um impeachment claramente sem crime, isto será um golpe. Não que alguém não soubesse, mas em certos momentos o óbvio também precisa ser dito. E foi.
O Congresso Nacional brasileiro cria uma nova teoria jurídica: o crime sem crime
No fim das contas, Dilma foi deposta por dois “crimes” inexistentes: editar, sem a aprovação do Congresso Nacional, créditos suplementares que não precisavam da aprovação do Congresso Nacional e atrasar repasses por duas ou três semanas, mora que foi “confundida” com ir ao banco pedir dinheiro emprestado. Como nenhum desses fatos era crime, Janaína-Paschoal-Sepultadora-de-Constituições tinha que usar de alguma criatividade jurídica para inventar nomes feios, confiáveis ao menos no fabuloso mundo pré-fascista da pós-verdade. Depois de muito pensar, acabou decidindo-se por plagiar uma expressão inventada lá no castíssimo jornalismo da Jovem Pan: “pedaladas” fiscais. Inspirada por aquelas cenas da Dilma andando de bike, feliz demais para uma Presidenta que tinha que sair do caminho.
Claro que não tinha qualquer chance de passar pela mais rasa análise jurídica o faz de conta de confundir pagamento fora do prazo com ir ao banco pegar uma grana ou que define como necessária a autorização desnecessária. Mas como a sepultada Constituição de 1988 infelizmente não instituía um regime parlamentar, e não dava para simplesmente tirar a Dilma “porque sim”, estava aberta a temporada da fake-democracia!
E sem nenhum crime a não ser impedir as velhas tradições toma-lá-dá-cá brasileiras de funcionar – igual quando você compra do amiguinho 20 anos de cloroquina que tem validade para dois – a Presidenta Honesta foi deposta para a felicidade geral dos tucanos PSDBistas, dos traíras PMDBistas, dos fascitas BOLSOnaristas, e das aves de rapina ESTADUNIdistas, que finalmente puderam voltar ao poder e ajudar a transformar o Brasil nesta beleza que temos hoje, de 75 mil mortos e 2 milhões de feridos, e sem nem uma ema na Presidência da República.
Prancheta nas mãos, milhares de assinaturas nas ruas e uma nova chance para o judiciário
Tudo certo, casa arrumada “com Supremo, com tudo”, Temer a postos para tocar o projeto do Aécio e CIA. Vitória total dos “fora, povo” que finalmente teriam paz para entregar o Brasil e os brasileiros para os gigantes do norte? Agora era só correr para o abraço, esperar o dólar cair e ir para Orlando? Nem tanto. Tem um pessoal aí que não gostou muito da ideia de sepultarem a vontade popular, enterrarem a Constituição e jogarem o Brasil na mais comum das valas de Repúblicas das Bananas.
Não saiu na grande mídia nem nos documentários, mas teve gente – e muita gente – que arregaçou as mangas, vestiu sua camisa vermelha, preta ou roxa e foi às ruas para lutar pela anulação desse que é o mais grosseiro ato nulo já praticado na nossa história. E olha que de atos nulos e arbitrários a história do Brasil é gigante!
Sabiam, estes militantes, que o golpe não afetava apenas um governo eleito por um partido político em particular. Não era só um golpe contra Dilma. Na verdade, o golpe estava sendo articulado desde a época do mensalão; articulou-se na Lava-Jato, com Moro Presidente… ops, ainda não… Juiz-promotor-delegado-ladrão (presidente só daqui a dois anos, se a Globo assim quiser) revelando ao país uma linda voz e uma vocação maravilhosa para a nova escola jurídica brasileira do crime sem crime, cuja contribuição fez evoluir para a tese da prova sem prova. Claro que com esse currículo todo não poderia perder uma boquinha nas tetas bolsonaristas.
Sabendo de tudo isso, o que realmente tinha acontecido e o que certamente viria pela frente, nosso povo foi às ruas de pranchetas e megafones nas mãos. Gente que até alguns anos estava cuidando da vida, trabalhando, estudando e só acompanhando a política pelos jornais, deu as mãos para antigos militantes dos anos 70/80 e foram conversar com as pessoas nas praças, ruas e cidades pelo Brasil à fora.
Resultado? Centenas de milhares de cidadãos brasileiros assinaram embaixo pela volta da Dilma e do Brasil que todos nós tínhamos. Aquele que tem um governo de verdade, que chega ao poder pela vontade do povo votando em eleições sem impedimento ao primeiro colocado disputar. Um governo honesto, trabalhando para a maioria da nação. Um governante que não cospe em cima dos mortos, não permite milhões de desempregados e subempregados, não deixa passar o fim da CLT ou da Previdência Social, não lambe o pé dos presidentes dos Estados Unidos, e mantém as riquezas dos brasileiros nas mãos dos brasileiros, levando universidade e prosperidade a milhões de pessoas, com casa, comida e roupa nova lavada.
Centenas de milhares entraram na luta, com nome, RG e CPF, apoiando a Ação Popular que traria ao Poder Judiciário brasileiro a chance de restaurar a Constituição de 1988 e junto a ordem e a paz no Brasil: anular o impeachment-golpe e declarar a invalidade de todos os atos golpistas do Temer, traíra do povo brasileiro.
Mas eis que a história insepulta renasce
Como no Brasil quase ninguém acredita nessas coisas como Cuca, Emília, no pó de pirlimpimpim (que não é aquele transportado em aviões da FAB, bem entendido!) e na “Justiça”, o povo militante já tinha noção de que a possibilidade do Poder Judiciário ser de fato um Poder Judiciário, baseado unicamente na Lei e na Justiça, era de 1 para 10 em uma análise quase tão otimista como as do Mundo de Poliana.
Mas o que talvez nem o mais amargo bilioso esperava era que a Justiça promoveria um verdadeiro escárnio, cínico e cafajeste: por mais uma “sorte” do destino, quem seria o juiz do processo de anulação do impeachment? Sim: os dados do judiciário dariam essa responsabilidade novamente a ele, o nosso heroico militante anti-Dilma: ITAGIBA CATTA PRETA NETO.
(Eu avisei que era para não esquecer esse nome…)
Eis que a história regurgitaria de suas entranhas fedorentas a bile amarelada das ruas de Brasília, dando-lhe o direito de julgar, com toda a imparcialidade existente em algum universo paralelo por aí, o processo que demonstra, com todas as letras, provas e teses jurídicas aplicáveis à espécie, que crime sem crime é sem crime, que prova sem prova não comprova, que não estamos em um regime parlamentar, e que golpe é golpe mesmo “com Supremo com tudo”, e por tudo isso, enquanto não for anulado, será o golpe quem continuará desgovernando as nossas vidas direto para a cova.
É uma questão central, de vida ou morte. Mas o militante-juiz não se demorou em mostrar toda a eficiente proficiência de sua lavra. Requerida medida antecipatória (liminar) para suspensão da validade dos atos golpistas que transformaram o Brasil em um caos de onde até hoje não conseguimos sair, a soberana sabedoria magistral assim se pronunciou: “a suspensão da validade de todos os atos praticados pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República, empossado no cargo após o impedimento que se pretende anular, resultaria em verdadeiro caos na vida nacional”.
Ufa! Ainda bem que lá em meados de 2018 pudemos contar com esse monumento de prudência e bom senso de gente de bens! Como seria caótica a nossa vida sem os atos do Temer, não é mesmo?
Tomados de surpresa pela canalhice explícita, os autores populares e seus advogados imediatamente ingressaram com um insofismável pedido de suspeição:
“Assim que tomaram conhecimento do juiz que preside o presente feito, os autores verificaram que Vossa Excelência é antigo defensor do impedimento que destituiu Dilma Rousseff do cargo de Presidenta da República”, disseram os autores.
“No presente caso, verifica-se não só a simples opinião pessoal claramente contrária ao objeto da presente demanda, mas obstinada e pública militância do magistrado julgador pelo impedimento de Dilma Rousseff como Presidenta da República” e por isso, não haverá meios para “garantir a toda a sociedade que poderá ter a necessária isenção de ânimo para julgar de forma imparcial tal demanda.”
À obviedade do pedido de suspeição, a resposta veio através da canalhice de uma manobra. Bastante singela, por sinal. Mudaram temporariamente o juiz do cargo:
“Os processos de competência do Juiz Titular da 4a Vara estão atribuídos a esta subscritora. Nesse caminho encontra-se PREJUDICADA a arguição de suspeição”.
Neste momento, já estávamos no final de 2018.
E sem dizer nem sim nem não, muito antes pelo contrário do que toda uma nação poderia esperar de suas instituições, o processo seguiu a passos de lesma dopada por benzodiazepínicos, barbitúricos e outros sedativos malucões não aprovados pela OMS, para chegarmos à pandemia de 2020 sem nem ao menos a citação do ex-golpista temerário da república, Michel.
Mas tem problema não! “A história sepultou a pretensão”
O desafio tinha lá suas complicações. Como é que o Poder Judiciário poderia manter o golpe e ao mesmo tempo julgar uma ação popular que demonstra não só que a Presidenta honesta não cometeu nenhum crime, mas que o seu impeachment é tão oco e sem conteúdo que até a narrativa feita pela Janaína-mata-constituições não descreve nenhum fato criminoso?
Qualquer análise, por mais superficial, inepta ou burra que fosse descobriria isso. Então só um contorcionismo enlouquecido daria conta de validar um descarado ato de ruptura institucional que na mão grande chegou no nosso povo e simplesmente anunciou o assalto: “Perdeu sua Presidenta, meu irmão”.
Nem mesmo o Ministério Público que produziu um Dallagnol teve coragem de dar continuidade às ações penais que deveriam suceder a perda de mandato de Dilma, para apuração e eventual punição de seus atos. Não seriam crimes? Então! Se assim fosse, teriam que ser apurados por ações penais. Mas o próprio MP considerou a “atipicidade” desses atos, ou seja, que nem em abstrato, em tese, os atos narrados no impeachment poderiam ser considerados criminosos.
Como manter um golpe nessas condições? Eu fiquei admirada com a genialidade jurídica do Catta Preta em sepultar essa história toda:
“Esta ação popular visa a declaração de nulidade do processo de impedimento e consequente deposição da então Presidente da República Dilma Rousseff e sua respectiva recondução ao cargo de Chefe do Executivo. Requereram também a declaração de invalidade de todos os atos praticados pelo sucessor constitucional, Sr. Michel Temer.
O processo de impedimento transitou em julgado. Foi impugnado perante o Supremo Tribunal Federal que reconheceu a validade da deposição.
Michel Temer exerceu o mandato até o fim, nos termos da Constituição, e foi eleito um novo Presidente da República, que está no exercício do mandato.
Esta ação perdeu o objeto. A História sepultou a pretensão.
Assim, em vista do exposto, JULGO EXTINTO O PROCESSO, sem resolução do mérito, com base no art. 485, inciso VI do Código de Processo Civil.
Assinado, ITAGIBA CATTA PRETA NETO, Brasília, 09 de julho de 2020.”
Seria então, o fim da história?
Exatamente, meus caros, o insuspeito e insepulto juiz militante Fora Dilma, pegou o processo e tacou-lhe uma sentença que cospe na nossa cara toda a canalhice que inaugurou esse inferno em que vivemos, onde milhões de brasileiros pagam com a vida os delírios dos que queriam um dólar mais barato para viajar para Miami e Orlando.
Mas não é o fim da história, até porque história não se sepulta tão facilmente e a pretensão do povo é de luta. E muita luta! Os autores populares já avisam que o recurso é tão certo quanto os túmulos abertos pelo “novo Presidente da República” que Catta Preta acredita realmente estar “no exercício do mandato”. Avisam também que tanto na esfera jurídica e como na arena política, teremos ainda muita briga neste nosso Brasil sem Constituição, sem instituições, sem governo, sem Forças Armadas que defendam quem lhes paga tudo, do coturno à boininha. O povo continua sua história e sua pretensão de ser dono de seu destino. E continua com força, garra, esperança. Com o sangue vermelho tocado por um coração valente no lado esquerdo do peito, que não vai desistir nunca da luta. Não importa quanto tempo dure, esta história não será sepultada: vamos até a vitória.