Algumas doutrinas e grupos políticos sempre se caracterizaram por seu sectarismo. Eles sim, se isolavam “muito antes de virar modinha”. É hora de aprendermos com esses mestres: que fazer para garantir o isolamento da quarentena?

por Danilo Matoso
A pandemia de Covid-19 colocou para todos os povos a necessidade do isolamento. De repente, havia uma desculpa convincente e socialmente aceita para se afastar de todos e cuidar de sua vida sem aturar chefes, colegas inconvenientes, trânsito, visões políticas discordantes etc.. Em casa, cada um é senhor de seu mundo. Prato cheio para quem sempre sonhou em ser Senhor do mundo. Algumas doutrinas e grupos políticos sempre se caracterizaram por seu sectarismo. Eles sim, se isolavam “muito antes de virar modinha”. É hora de aprendermos com esses mestres: que fazer para garantir o isolamento da quarentena?
O sectarismo é parte da natureza humana. Afinal, a identidade plena de cada um é só consigo mesmo. Sexo, seita, sectário, todos com a mesma raíz etimológica no verbo latino secare – cortar, cindir, romper. Na mitologia antiga, a própria necessidade de sexo vem do racha entre homem e mulher, Eva e Adão racharam com Deus e seu Paraíso quando fizeram um conchavo com a serpente, Cristo rachou com os judeus quando quebrou os vendilhões do templo. Rachar com todo o mundo porém traz também seus problemas – sobretudo a o isolamento e a solidão. O velho ermitão Francisco Rodrigues dos Santos Saraiva, autor do Novíssimo diccionario latino-portuguez, no final do século 19, trazia de Plauto a definição de sectarius como “cortado, castrado, capado, eunuco”.
Diante de uma pandemia, em que a própria ciência apregoa o isolamento monacal, a conversão dos lares em celas de clausura, como seguir fazendo política? Revolucionários, paranoicos, conspiracionistas, movimentos de fundo de quintal, partidos do eu sozinho, super-heróis em geral: todos tentam continuamente fazer política a partir do isolamento, e por isso mesmo transformam-se em exemplos de insucesso. Uma política, por definição, é tão mais certeira e bem-sucedida na medida de sua capacidade de atingir um número maior de pessoas, e não na medida de seu poder excludente.
Mas ser excludente hoje é exatamente o que todos querem para manter a si e a sua comunidade saudáveis! O jogo virou. É hora de abandonar não só o marxismo, com aquele papo de “uni-vos”. É hora de abandonar também o groucho-marxismo: vamos entrar naquele clube seleto que sempre quis tê-lo como sócio para gozar dos prazeres da exclusividade. Quanto menor, melhor.
É hora de aprender a fazer política com os sectários.
Pensando no bem-estar e na saúde de seus leitores, O Partisano entrevistou Eusébio Marzagão, líder de importante grupo político na periferia de Brasília, notável por sua capacidade de isolamento. A pedido de Eusébio, omitimos o nome e a natureza de sua organização. Partes secundárias da entrevista também tiveram que ser cortadas – segundo Marzagão, “poderiam atrair infiltrados”. Nosso leitor saberá apreciar esses valiosos ensinamentos para aprender como fazer política sem influenciar ninguém e sem fazer amigos. Questão de vida ou morte em tempos de pandemia.
O Partisano se reuniu com o entrevistado numa casa modesta, numa cidade-satélite do Distrito Federal. Era uma tarde ensolarada de sábado. Uma família de umas 20 pessoas organizava um churrasco num barril de aço num lote vago próximo. A rua estava cheia. O anúncio de “plenária” de seu coletivo no portão parecia não atrair muitos convivas, apesar do anúncio de cerveja a R$ 1 na rua. Uma criança ao lado da porta entregava um panfleto com um manifesto.
A reportagem foi bem recebida pelos três integrantes do grupo. A plenária não começara. Eles mantinham acirrado debate sobre o balanço da última atividade: um churrasco que aparentemente só contara com eles mesmos. A dúvida era o que fazer com a carne que restara. O presidente acabou dando a palavra final: pagaria pela carne e a guardaria para si.
Passadas duas horas do início da plenária que não ocorrera, sem mais ninguém na sala, desfez-se a assembleia. Restaram o presidente do grupo e a reportagem. É um homem de pouco mais de cinquenta anos. Perguntou se podia fumar. “Tudo bem”. Ele abriu a janela e ligou o ventilador. A sala que estava fresca se inundou de um ar quente. O cheiro do churrasco na rua ficou mais forte. Demos início à entrevista, enquanto nosso anfitrião nos servia uma das cervejas anunciadas na entrada.
O Partisano: Há quanto tempo você se dedica à política?
Eusébio Marzagão: Posso dizer que toda a minha vida foi dedicada à política. Eu nasci nessa rua que tem uma comunidade muito ativa. Sempre teve. Achei que devia fazer algo por essa gente.
OP: Há alguma organização além da sua aqui?
EM: Não. Nenhuma. Só a nossa, que existe há quase 45 anos. Temos uma longa história de militância aqui na comunidade.
OP: Você sempre morou aqui?
EM: Não, não (risos). Essa é a casa que meu pai nos deixou. Eu cresci e me criei no Plano Piloto. Tive sorte na vida. Mas sempre tive uma ligação muito profunda com essa cidade, com essa rua, com esse povo. Meu pai, que Deus o tenha, fundou nossa organização em 1985. Era a época da redemocratização. Tivemos um papel político muito importante naquele período. Eu sempre o acompanhei. O povo aqui gostava muito de meu pai. Vi isso aqui crescer, sabe? Depois que ele morreu, em 1997, não quis deixar esse povo desamparado. Ainda que sejamos um grupo pequeno, nosso trabalho de conscientização política é muito importante. Somos influentes no país inteiro.

OP: Quais as principais realizações de sua organização?
EM: Sempre estivemos junto à comunidade. Fazemos um trabalho de panfletagem, de diálogo, de construção permanente. Prefiro não falar de resultados, mas da importância do processo. Tem sido um processo muito bonito. Cansativo, mas bonito. Quando meu pai começou, isso aqui não era nada. Agora tá essa cidade aí, esse povo maravilhoso na rua…
OP: Em que medida participaram do desenvolvimento da região?
EM: Fazíamos muitas plenárias na época em que urbanizaram essa área. Colocamos nossa política para a comunidade, que não aceitaríamos esmola da burguesia. Eu tinha ido à França, assistir a Copa do Mundo. Vi bairros muito bonitos lá. Era aquilo o que queríamos. Queríamos urbanização padrão Fifa, nada menos. Tivemos uma influência muito importante naquela época. Tiramos a palavra de ordem “Ou Fifa ou nada”. Isso quinze anos antes do movimento Não vai ter copa! Sempre estivemos à frente de tudo. Mas infelizmente, a burocracia vendida, oportunista, acabou prevalecendo. Fizeram isso que está aí. Está bom, mas poderia ser padrão Fifa.
OP: O grupo possui alguma filiação a partido político?
EM: Nenhuma! Aqui já veio muita gente de tudo quanto é partido. Nós estamos é do lado do povo, sabe? Os partidos hoje estão todos comprados. Falta uma política revolucionária, que fale ao povo… Que atenda seus verdadeiros anseios de pão, paz e terra… Nós estamos aqui. Junto do povo.
OP: Mas o senhor não mora aqui…
EM: Não, não… Mas sempre ouvi muito o povo. E quis manter o legado de meu pai. Ele era um revolucionário. Todos aqui gostam muito dele… Quem conversou com ele, quem conhece nossa política, sabe que ela é única. Não tem nada igual em Brasília. E estou falando nada mesmo, sabe? Incluindo aqueles picaretas do Congresso Nacional. Vamos falar o que é verdade: a gente tem clareza do que quer, a gente quer ver esse povo todo feliz. A gente quer a revolução. Não vamos aceitar nada menos. Quando a gente tem clareza, conhece a verdade dos fatos, o que move o mundo, a gente incomoda muita gente, cria muitos inimigos. Aí vêm a fofoca, as campanhas de calúnia… Mas nunca demos bola pra isso. Claro que às vezes temos que dar combate. Na semana passada mesmo quebramos um arrombado da rua de baixo que fazia campanha contra nós.
OP: Era de um grupo de oposição a vocês?
EM: Não… Ele está indo pra oposição, mas até coisa de dois meses era nosso. Era meu vice-presidente. Mas capitulou completamente pra grana fácil, pro oportunismo…
OP: Com quais grupos nacionais ou internacionais vocês se identificam?
EM: Hoje em dia, nenhum. É muito raro terem a clareza política que temos. São tempos muito difíceis. O capitalismo está em crise. Já fomos trotskistas, mas hoje consideramos que praticamente todos os trotskistas são vendidos, contrarrevolucionários. E você sabe como se deve tratar os traidores da revolução…
OP: Vocês se reivindicam stalinistas?
EM: De jeito nenhum. Stálin sempre foi inimigo da revolução. Na verdade, Lênin também. Acho que precisamos ir além dessas experiências recuadas. Você vai ver, sempre amoleceram o verdadeiro centralismo democrático com democratismos e demagogia. Nunca implementaram uma verdadeira ditadura do proletariado. Os bolcheviques eram todos pequeno-burgueses.
OP: Em que movimento, em que revolução, vocês se espelham?
EM: Em nenhum. Nosso movimento é completamente diferente de tudo.
OP: Mas deve haver algo que vocês considerem bom…
EM: Não. Somos contra os anarquistas também, muito individualistas. Aquilo não vai dar em nada. É preciso ter um Estado, uma organização operária forte à frente dele.
OP: E como sua organização funciona?
EM: Estamos sempre abertos a todos. Queremos trazer o maior número de pessoas possível pra nossa causa. Isso aqui que você viu hoje, nossa plenária. Ela acontece há anos…
OP: Mas não veio muita gente hoje.
EM: Estamos passando por um período de refluxo, mas já tivemos mais gente, e no conjunto estamos crescendo.
OP: A organização já teve quantos militantes?
EM: Já chegamos a quinze. Hoje temos dez. Os três que você viu aqui hoje, meus dois filhos, são os mais assíduos. Eles são dirigentes já.
OP: Quem são os demais dirigentes?
EM: Oi?
OP: A rua está cheia. O povo está na rua. Por que você acha que não vieram à plenária da organização?
EM: A maioria já esteve entre nossos quadros, mas se venderam por carguinhos, por uma boquinha. Aquele churrasco mesmo ali. É uma esmola que dão pra comprar a militância. Eu não me vendo. Preciso manter o legado de meu pai, que todos respeitam.
OP: Como a organização se sustenta financeiramente?
EM: Aqui tudo é com o dinheiro e o trabalho dos militantes. Construir a organização é uma tarefa revolucionária, já dizia meu pai. Na época em que nos mudamos daqui, quando tínhamos quinze quadros, a arrecadação era muito boa, porque eles acreditavam de verdade na causa. Praqueles guerreiros não tinha tempo ruim. Fizesse sol ou chuva, estavam lá, vendendo rifa, fazendo campanha financeira. Com isso, pudemos nos mudar para o Plano Piloto e doar à organização essa sede que vocês veem aqui hoje.
OP: Os militantes da organização trabalham com o que?
EM: A maioria trabalha no serviço público, infelizmente. São parasitas do povo, nesse sentido. Mas sabemos que isso é uma condição transitória. O que realmente interessa é que eles contribuem todo mês, e trabalham por sua redenção. Digo, pela revolução. É preciso saber se doar muito para trabalhar numa causa dessa, sabe? Veja o meu pai. Veja o meu próprio caso! Passei a vida aqui.
OP: No momento, você trabalha com o que?
EM: Como assim? Eu trabalho aqui.
OP: Claro. Parece exigir uma dedicação muito grande. Como ficam a família, os amigos?
EM: Meu camarada, estamos numa guerra. Guerra não é momento para pensar em amigos, ou em família. É uma luta de vida ou morte constante. Se você capitula um dia sequer pode ser seu fim. Aqui incentivamos a amizade e os relacionamentos entre membros do grupo. A vida fora daqui é uma merda, todo o mundo sabe.
OP: Há o risco de que a pandemia de Covid-19 chegue ao Brasil nas próximas semanas. Alguns casos já foram relatados no país. Na China, Wuhan foi completamente isolada e na Coreia do Sul as pessoas estão sendo monitoradas por celular. Como vocês esperam combater mais esse flagelo do povo?
EM: Isso tudo é armação para reprimir a população. Mas nós estamos do lado do povo. Não vamos ficar em casa, escondidos embaixo da cama. A verdadeira luta se dá nas ruas! O país não pode parar porque o Imperialismo quer. Precisamos fazer mais plenárias, fazer uma grande campanha contra isso.