Arthur Schopenhauer e a essência do discurso da extrema-direita

Platão define a “erística” de Schopenhauer como a habilidade de lutar com argumentos com o objetivo de refutar o interlocutor a qualquer preço, tática constantemente utilizada por bolsonaristas

Arthur Schopenhauer (1788-1860)
por Alexandre Lessa da Silva

Um pequeno livro, escrito pelo filósofo alemão Arthur Schopenhauer, encontra-se como uma das obras fundamentais para entender o discurso da extrema-direita mundial, incluindo aquele da chamada direita alternativa (alt-right). Dessa forma, Dialética erística: a arte de ter razão (Eristische Dialektik: Die Kunst, Recht zu behalten) é um livro que tem todos os atributos encontrados na construção de narrativas pela extrema-direita brasileira e mundial. O curioso é notar que o mesmo livro também é, já há muito tempo, inspiração para os trolls da internet. Apesar de curioso, isso tem sua razão, uma vez que os métodos, assim como os alvos e as pessoas, na maioria das vezes, são os mesmos.

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A erística, assunto do livro em questão, retira seu significado da interpretação que Platão dá, em especial no diálogo Eutidemo, da arte utilizada pelos sofistas, em contrapartida ao método socrático. Platão define “erística” como a habilidade de lutar com argumentos com o objetivo de refutar o interlocutor a qualquer preço. Dessa forma, a erística não tem compromisso com a verdade e o conhecimento, mas com a contenda e a vitória sobre o oponente. Sua origem etimológica já confirma sua definição. “Erística” vem do grego ἐριστικός (eristikós), derivado de ἐρίζω (erízō) que tem como significado contenda, luta, disputa. Também está ligada ao nome da deusa Éris (Ἔρις), deusa da discórdia e que é retratada na Ilíada, por Homero, como parenta, provavelmente irmã, do sanguinário Ares e que está na origem da Guerra de Troia. Esse arquétipo da discórdia está presente em todos os ideólogos da atual extrema-direita. Basta lembrar a retórica do “nós contra eles” e o discurso de ódio que estão na base de todo pensamento da direita alternativa.

O livro de Schopenhauer é uma obra encontrada e editada após a sua morte. Grandemente inspirada nos Tópicos de Aristóteles, livro que é parte do Órganon e onde o filósofo estagirita examina a dialética, forma de argumentação baseada na endoxa (ἔνδοξα), crenças ou opiniões comumente aceitas, o livro de Schopenhauer também não está voltado para a descoberta da verdade, mas sim para a vitória em um debate. Assim, para a dialética erística, não interessa convencer o seu interlocutor ou uma plateia de que seu argumento é verdadeiro, papel da lógica. O que realmente importa é a sua vitória pessoal, por meios lícitos ou ilícitos (per fas et per nefas), não importa. Assim, você pode saber que sua tese é falsa e, portanto, que está errado, mas, mesmo assim, continuar fazendo de tudo para persuadir a todos que você está falando a verdade. Dessa forma, mesmo sendo informado dos perigos da Covid, Bolsonaro ou Trump desdenham da doença, dizendo, por exemplo, que não passa de um “resfriadinho”, pois não interessa a verdade ou as vidas, mas apenas a vitória de seu discurso político.

“A arte de ter razão” é uma obra que apresenta 38 estratagemas para levar a vitória em uma discussão. Evidentemente, por falta de espaço, não serão examinados todos eles, mas apenas alguns de grande importância para provar o seu valor para os ensinamentos dos ideólogos da extrema-direita e o discurso político de seus discípulos. Antes, porém, é necessário dizer que Schopenhauer, ao falar da base de toda dialética, analisa os fundamentos para refutação de qualquer tese. Nesse ponto, há dois modos de refutação, levando em conta a natureza das coisas (ad rem) ou a verdade subjetiva de seu interlocutor (ad hominem), ou seja, o ataque ao discurso de seu oponente pode estar focado nos fatos ou nas crenças subjetivas dele. A seguir, é dito que há duas vias para a refutação. A primeira é direta, isto é, voltada para a tese e seus fundamentos e a segunda é indireta, que visa as consequências dessa tese. Ainda, nesse ponto, o autor aborda a questão da Apagogia e da instância (ενστασις) e de sua importância na argumentação (1).

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O primeiro estratagema leva o nome de “a ampliação” e afirma que se deve “levar a afirmação do inimigo para além dos seus limites naturais”. Basicamente isso significa que a afirmação do seu adversário deve ser exagerada, tomada da maneira mais ampla possível, pois assim fica mais fácil o ataque. Em compensação, a sua própria tese deve ser a mais limitada possível. Assim, por exemplo, é fácil transformar exceções legais contra o aborto em um crime contra a vida, como ocorreu no caso do aborto praticado por médicos, legalmente, em uma menina de 10 anos.

O estratagema 4 fala de pró-silogismos e, mais exatamente, de como se deve fazer o oponente a aceitar as suas próprias premissas sem perceber. Dessa maneira, é fácil encontrar um evangélico de extrema direita querendo que um agnóstico ou ateu aceite a Bíblia logo no início de um debate, pois, se você o fizer, provavelmente ficará em maus lençóis. A Bíblia faz parte das premissas dele, não das suas.

O uso de proposições (sentenças) falsas para iludir o adversário e chegar à conclusão desejada também é permitido por Schopenhauer. No número 6, ele deixa isso bem claro, defendendo o uso de afirmações falsas em relação aos fatos, mas não em relação ao interlocutor. Na CPI da Covid ou do Genocídio, isso foi feito incessantemente pelos senadores e médicos bolsonaristas, levando dados falsos que dificilmente poderiam ser checados na hora.

Outra tática, a sete, consiste em perguntar, de maneira errática, várias coisas de uma só vez para ocultar aquilo que se deseja admitir. Essa estratégia tem por objetivo confundir o adversário para que não perceba sua verdadeira intenção. Isso é uma prática comum de todos os membros da extrema-direita quando participam de um debate, desde o MBL até Bolsonaro. Em geral, isso ocorre em conjunto com o estratagema 8, “suscitar a cólera do adversário”, pois, uma pessoa colérica deixa o raciocínio, muitas vezes, de lado.

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O estratagema 11 trata da indução indevida, isto é, fazer com que o adversário aceite algumas proposições particulares e, através delas, buscar empurrar uma conclusão geral. Assim, Bolsonaro vira e mexe apresenta alguns casos em que a vacina provocou uma reação adversa para tentar provar que a vacina é sempre perigosa. Essa é a razão para o atual governo brasileiro buscar tanto uma morte provocada por alguma vacina contra a Covid.

A confusão semântica, ou de significados, é descrita no número 12. Consiste em associar uma palavra a significados diferentes dos normais. Assim, a palavra “comunista” é usada, pelo neofascismo, para designar todos aqueles que fazem parte da esquerda. Já a palavra “esquerda” serve para designar todos os seus adversários. O resultado disso é que liberais, para esse grupo de fanáticos, são chamados de comunistas muito constantemente.

O estratagema 16 também é muito usado por essa parte do espectro político. Schopenhauer chama esse estratagema de “argumenta ad hominem ou ex concessis” e consiste em atacar diretamente a pessoa de seu oponente através de afirmações ou crenças que possui. Exemplos são os famosos “vá pra Cuba” e “Vá pra Venezuela”.

A mutatio controversiae é o tema do 18. Consiste em desviar o debate para um outro assunto quando você está prestes a perder o debate. Não é à toa que a trupe do populismo de direita troca tanto de assunto no meio de uma discussão.

Retorsio argumenti é o tema do 26. Basicamente, acontece quando você usa o argumento de seu interlocutor contra ele. Por exemplo, é dito que um menor não deve ser punido da mesma forma que um maior em função de sua formação, enquanto cidadão e pessoa, incompleta. O adversário poderá, então, afirmar que é justamente por causa disso que deve ser punido para aprender.

O estratagema 28 aborda o argumento ad auditores, ou seja, uma objeção inválida, mas que somente um perito poderia desmenti-la. Isso geralmente é usado quando a plateia não composta por especialistas. Todas as afirmações de médicos que defendem a cloroquina para um auditório são, em geral, dessa forma.

O estratagema 30 consiste no argumentum ad verecundiam ou argumentum magister dixit, que nada mais é do que o argumento de autoridade. Citar a Bíblia, para os evangélicos, ou no caso do senador Heinze quando cita Didier Raoult e outros cientistas para defender o uso da cloroquina contra a Covid. Não é preciso dizer que isso é uma falácia, pois não há argumento de autoridade contra fatos.

O 31 é um deboche da afirmação do adversário, é insinuar, ironicamente, que as palavras de seu adversário são absurdas, mesmo que verdadeiras. Assim, diante de um teórico de esquerda, é comum que um discípulo desses “engenheiros do caos” afirme que é uma teoria muito rebuscada, incompreensível, com o objetivo de retirar sua seriedade.

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A estratégia 32 consiste em rotular a tese de seu “inimigo” como odiosa. Por exemplo, quando um pastor rotula a homoafetividade como algo contra Deus, tentando os fazer com que a plateia rejeite essa expressão do amor.

O número 33 é afirmar que “isso pode ser verdade em teoria; na prática, é falso”. Basicamente, esse argumento é usado por boa parte da imprensa e outros defensores do neoliberalismo quando se trata de uma política que beneficie a maior parte da população, como no caso da revogação da Reforma Trabalhista. Para eles, isso é muito bonito em teoria, mas, na prática, levaria ao caos. Mais uma vez, o sofisma aparece.

O estratagema 35 “tão logo seja praticável, deixa todos os outros supérfluos: em vez de agir sobre o intelecto por meio de razões, agimos sobre a vontade por meio de motivações”. Em outras palavras, você utiliza a vontade, o desejo do outro para atingir seu objetivo. Talvez, e só talvez, isso tenha sido usado para impedir o impeachment de Bolsonaro. Sem mais comentários.

Os últimos estratagemas, 36, 37 e 38, dizem respeito ao uso do discurso sem sentido ou incompreensível, usar uma prova como tese e ao uso de ofensas pessoais, em último caso. Usar uma prova fraca e deixar de lado a tese é algo muito usado, pois é mais fácil bater em uma prova fraca do que uma tese verdadeira.  Confundir o adversário com palavras absurdas também é algo muito usado pela extrema-direita e, no que diz respeito às ofensas, não é preciso de nenhum comentário, já que são usadas a todo momento e está na essência de toda extrema-direita.

 

  1. SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ter Razão: 38 estratagemas. Trad. Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes, 2017.

 

Apagogia: aceitamos a proposição adversária como verdadeira; em seguida, mostramos o que se segue dela quando, em conexão com qualquer

outra proposição reconhecida como verdadeira, a utilizamos como premissa para um silogismo do qual surge uma conclusão manifestamente falsa, porque contradiz ou a natureza das coisas, ou as outras afirmações do próprio adversário, sendo, portanto, falsa ad rem ou ad hominem

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A instância, ενστασις, exemplum in contrarium: refutação da tese geral por demonstração direta de alguns casos compreendidos em sua enunciação para os quais a tese não se aplica, de sorte que ela própria deve ser falsa.

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