Lutamos com e pela liberdade de pensar e agir — quem não está a fim de se submeter às ordens de um patrão burguês, não vai formar nunca a classe da opinião única

por Alexandre Flach
O povo brasileiro continua completamente vulnerável ao gado direitista que desde 2016 só encontra porteiras abertas para pisar e repisar nos nossos já escassos direitos. Assim é, e assim continuará até que suas potenciais lideranças se entendam e passem a agir articuladamente contra o inimigo comum: a burguesia.
E por falar em inimigo, esta semana o cramunhão já soltou um balão de ensaio da privatização da saúde, que se a coisa continuar como está, vai mesmo acontecer, mais cedo ou mais tarde. Afinal, essa grana que hoje sustenta o SUS precisa ser redirecionada: vai engordar mais um pouco a grossa parcela de impostos que cai direto no bolso dos “necessitados” de Wall Street.
Tudo bem que o golpe de 2016 deixou a nossa esquerda toda desnorteada, mas passados quatro anos, chega de lamber feridas, lamentar perdas, morder desafetos ou continuar com essa disputazinha de mercado político de nano-burguês metido a Lênin. Pelo menos por agora, a esquerda precisa aprender a funcionar estrategicamente, como um único partido — composta de várias frentes, com milhares de jeitos diferentes de lutar, sotaques políticos e ideológicos diversos, mas tendo a inteligência de cooperar uns com os outros em todas as lutas possíveis para começar a ganhar as disputas com a burguesia — eleitorais ou não.
Pouco importa se em São Paulo é com Boulos ou no Rio a melhor aposta é a Benedita, o que interessa neste momento é uma coisa só: chega de perder.
A esquerda é um único partido e não um partido único. Tem diferença? Tem
O Ciro é bem-vindo na luta do povo, assim como o Felipe Neto ou qualquer outro, porque na luta do povo o que importa são ações concretas e não a divisão do mundo entre bonzinhos e mauzinhos, ressentidos e abiguinhos. É luta entre classes econômicas e não entre o 3º e o 4º ano do ensino fundamental.
Claro que na luta popular nós somos todos diferentes. Lutamos com e pela liberdade de pensar e agir. É justamente isso que nos dá o gás para lutar. Quem não está a fim de se submeter às ordens de um patrão burguês, não vai formar nunca a classe da opinião única, do monolitismo, da unanimidade resignada e burra. Mas vai formar classe da unidade. Contraditório? Sim, se você estiver pensando dentro da caixinha limitada da burguesia e sua anacrônica lógica do mercado, em que liberdade é escolher entre uma mercadoria e outra, e mercadorias sempre estão em relação de competição entre si. Objetos justapostos em um mercado. Por isso mesmo, sempre opostos.
O proletariado, pelo contrário, pensa com a lógica da cooperação, da solidariedade. Cada um faz uma parte. Vamos fazer uma festinha? Uns trazem a comida, outros a bebida. Vamos fazer um ato político? Tem gente que vem com o material, outros com as bandeiras, alguém arruma um carro de som, faz uma vaquinha com quem não pode ir, e a coisa sai. Em resumo: pra nós, a diversidade é necessária. Quando não tem, faz falta. Na lógica do povo, a interação dos diferentes é que produz a riqueza.
Duas classes econômicas opostas, duas ideologias políticas opostas
Veja só o que acontece no chão da fábrica: só tem produção se diferentes competências e pontos de vista estiverem trabalhando juntos. Esta é a etapa proletária da produção de riquezas, a que produz as coisas que a gente usa, valores de uso, no jargão preciso de Marx.
O patrão burguês pega o que o proletário produziu e coloca à venda no mercado. Objetos de uso são transformados em mercadorias para dar grana para o patrão que não produziu nada. As mercadorias encontram outras similares no mercado, e assim nasce a competição.
No mercado capitalista, a luta não é de classes, mas sim entre mercadorias de diferentes proprietários. A diversidade gera o conflito, o conflito produz divisão. A briga aqui não é pela satisfação de necessidades concretas, mas pela simples realização do valor de troca, no consumo. Para a burguesia, a pluralidade atrapalha, é obstáculo para a realização de seus objetivos. No fundo, o que o burguês quer é ter o monopólio do mercado, da palavra, da ação e do poder. Em suma, um mundo fascista. Esta é a fase burguesa da produção capitalista.
As diferenças são um problema para a burguesia e uma fonte natural de riqueza para o proletariado. Por isso, “unidade” significa coisas completamente diferentes para a burguesia e para o proletário. O raciocínio burguês resulta no indivíduo, no patrão, na autoridade monocrática. O raciocínio proletário gera a sociedade. Diante disto, não haveria nada mais natural do que a união “da esquerda”, da luta do povo assimilando diferenças como produção certa de riqueza política. Mas o que se tem observado é justamente o oposto. Por quê?
Em tempos de refluxo da luta popular, quem manda é a cabeça burguesa
A forma de pensar dominante em uma sociedade é a forma de pensar de sua classe dominante, principalmente quando os oprimidos se calam. Com o povo resignado, considerando o massacre da exploração capitalista simplesmente como o “mundo real”, a lógica burguesa de competição por mercados, e a confusão entre luta de classes e disputa entre diferentes soluções práticas (valores de uso), contamina as organizações populares, deixando muito pouca gente de fora desta verdadeira “bolha”.
Com o avanço da China proletária sobre o capitalismo mundial, principalmente a partir da segunda metade dos anos 80, o Partido Comunista Chinês conseguiu promover o rápido desenvolvimento das forças produtivas para seu povo, e hoje tende a tomar as rédeas políticas do mundo do jeito mais marxista possível, pela economia. Mas o efeito colateral do possível avanço de uma região do planeta para uma realidade verdadeiramente socialista é enorme.
A pujança própria do crescimento econômico efetuado através de bases cientificamente planificadas que só são possíveis através do controle estrito do capital e da pseudo-burguesia local que dele decorre, está totalmente fora do alcance das antigas sociedades capitalistas, que inevitavelmente passam a experimentar forte desindustrialização. As forças produtivas do mundo capitalista migram para a China e isto gera um profundo refluxo do movimento operário internacional.
O operário é, em geral, a ponta de lança da luta popular, dado o seu poder de parar a produção capitalista. Se esta parte do proletariado entra em refluxo, a política popular como um todo sofre enormes distorções que não poupam ninguém. Hoje, até os mais arraigados partidos e grupos leninistas, trotskistas, revolucionários marxistas de carteirinha, estão, em geral, encalhados no sectarismo e no quixotismo. Quando não atolados no autoritarismo nano-burguês de um patrãozinho qualquer, que vive em realidades paralelas, com graus de esquizofrenia política que variam na relação direta da sua maior ou menor inserção e organicidade com as massas populares.
Enquanto isso, “o Brasil já está no bolso”, e não é do Bolsonaro
O “Brasil já está no bolso” dos Estados Unidos, como disse Pepe Escobar no 247. Agora que o Pré-Sal, a Petrobrás e a Embraer não são mais nossas, a Previdência, a saúde e educação já deixam mais folga para nossas generosas doações aos banqueiros (o que eles chamam bonitinho de superávit primário) e os trabalhadores brasileiros já estão plenamente desempregados e à disposição para serem escravos dos apps do Vale do Silício, Bolsonaro e sua turma de loucos varridos já não têm mais muita serventia. Nem do Moro estão precisando mais!
Por isso, já faz um tempo que os donos da grana se esforçam para guardar o cão raivoso do fascismo na jaula e levar o Brasil para um “centro” político, calmo e pacífico, sem Bolsonaro, mas sem Lula também. Na verdade, sem esquerda. A burguesia quer mesmo é enterrar todo mundo da esquerda, não só o PT. Não se confunda: não é sem esquerda “de verdade”, é sem esquerda nenhuma, ou apenas permitir uma esquerda completamente irrelevante, sectária, de nicho, longe, bem longe, do povo.
A burguesia quer o que sempre quis: o monopólio. Monopolizar o poder sobre o Estado e sobre a sociedade. Sem povo, sem luta, sem nenhuma participação relevante na política que não venha da própria burguesia. É o ideal fascista, sem dúvida, e tudo indica que a leitura burguesa da conjuntura é a de que eles não vão nem precisar de um regime “forte” para conseguir isso. Até porque, regime forte parece que não está mais disponível para o “mercado”.
Fascismo real nem precisa do fascismo formal
Para o povo das favelas e ocupações, negro, pobre e jovem, o fascismo sempre foi a sua única realidade. A repressão do proletariado é direta, sanguinária, assassina, com polícia metendo a bota nos barracos e matando lideranças populares, como acontece cotidianamente na região metropolitana de Belo Horizonte, sem maior resistência da esquerda do que alguma nota de repúdio solta na nuvem.
Além disso, os movimentos políticos da burguesia desde a soltura do Lula dão a entender que eles bem sabem que o ataque ao PT foi bem-sucedido em aguçar as lombrigas oportunistas de muita gente da esquerda, alimentando a síndrome de urubu e a autofagia das lideranças populares. De forma mais ou menos dissimulada, muitos aparecem querendo ocupar o lugar do atual “partidão”, e ser um “novo PT”, bem ao estilo burguês de luta por mercados.
Não demorou até aparecer quem dissesse a piada de tiozão de mau gosto que o “PT envelheceu mau”. “Para um partido que venceu quatro eleições presidenciais consecutivas neste século, não basta colocar a culpa na mídia, na Lava Jato e nos adversários para justificar a derrocada”. Não “basta”?? Caraca!
Ou seja, não basta o poder da imprensa burguesa inteira 24 horas por dia; não basta o “Estado Profundo”, os porões do imperialismo, em força tarefa com traidores nacionais muito bem instalados em nossas próprias instituições; não basta “adversários”, que além dos já mencionados, são apenas as Forças Armadas, milícias fascistas e a classe política burguesa em conjunto, com Supremo, com tudo… Para o célebre articulista, não basta.
Pior que não bastou mesmo. Ainda assim o PT está aí na luta. E graças a isso — e só por causa disso — a esquerda toda também está. “Vida que segue”, né Kotscho?
Por que será que o proletário diz que não gosta mais de “políticos”?
Outro dia, ouvi de um operário: “O problema é quando os sindicalistas esquecem da gente para só pensar em ‘política’”. Muito mais do que a velha ideia de que isso seria uma demonstração da luta econômica suplantando a luta política, o que o jovem operário de fato expressa é uma desconfiança nos seus políticos, nos políticos tradicionais da esquerda.
Claro que em qualquer lugar o povo sabe que era melhor na época do Lula e da Dilma. O que o povo desconfia hoje é se a esquerda não acabou ficando frouxa demais e não tem mais condições de liderança. Em geral, embarcando nas palavras que a burguesia convenientemente lhe serve todos os dias pela imprensa, o povo generaliza falando em “políticos”.
A fala do operário talvez esteja a demonstrar uma das mais sérias consequências do golpe: a percepção popular de que se a esquerda não conseguiu nem defender-se a si mesma, jamais terá condição de defender o povo. Se a estrela do PT anda meio sem-graça para inspirar corações e mentes das massas para a luta, é justamente porque o povo não costuma acreditar em quem não luta nem mesmo pela própria honra.
A esquerda precisa provar para o povo que está viva — e precisa provar isso agora, em 2020 — para ter alguma chance de reconquistar a confiança popular. O PT e toda a esquerda atual, parida direta ou indiretamente pelo PT, precisa provar que nunca perdeu a força, a coragem e principalmente a sabedoria necessárias para continuar a matar a cobra e mostrar o pau.
Na luta de classes econômicas o que importa é a ação concreta
“A essência do marxismo científico consiste em reconhecer a independência das forças motrizes reais da história com relação à consciência (psicológica) que os homens têm dela”. (Lukács)
Então, dentro das forças históricas reais, o que importa agora para a esquerda é vencer. Vencer as eleições. Quem tiver mais força, tem que ter o apoio dos demais. É o que está acontecendo em Porto Alegre, por exemplo, com o apoio vitorioso do PT à Manuela D’Ávila. É o que deve acontecer em São Paulo e Rio de Janeiro também, urgentemente, fazendo a dobradinha de aliança PT-PSOL.
O problema aqui não é tanto de “transferência de votos”, de somar ou não porcentagens de pesquisas suspeitas, ou de qualquer outro cálculo mais ou menos oportunista.
A questão é que está na hora de mostrar para o povo que, para seu interesse, a esquerda está deixando de lado a forma burguesa de disputa e passa a adotar o estilo proletário de luta: na eleição, quem tem mais chance ganha o apoio geral dos companheiros, imediatamente. Independentemente dos “turnos” do joguinho institucional, em São Paulo a esquerda deve ser Boulos, e no Rio, Benedita. Imediatamente.