Privatização, uma proposta lusitana

Dos 206 países do mundo, apenas 8 têm serviços postais sob controle privado, o que deixa claro o iminente fracasso dos Correios num contexto de privatização

por Ivan Conterno

O ano era 2013, o português, o argentino, o americano e o brasileiro conversam numa mesa de bar. O português dizia que queria privatizar os correios. O americano deu uma gargalhada, mas logo disfarçou o riso. Conselho de troika! O argentino, que já tinha feito a mesma merda antes e inclusive já tinha reestatizado a empresa, tentou alertá-lo: “Carajo! Topo!”, mas o português entendeu bulhufas. Agora é o brasileiro que entra no mesmo porre.

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Os Correios de Portugal, quando eram empresa pública, ofereciam bons serviços e apresentavam resultados econômicos satisfatórios. Desde que a empresa foi privatizada, em 2014, o caos se instaurou. Sete anos de azar! Com o fechamento de diversas agências, muitos lugares perderam o acesso aos serviços. Os prazos de entrega quase quadruplicaram e os trabalhadores foram terceirizados, em regime de trabalho temporário e mal remunerados. Agora, o português só fala em reestatização, e não é só o português de esquerda que apoia essa ideia. Na Argentina, o serviço foi vendido para a família Macri em 1997, mas foi reestatizado seis anos depois.

No Brasil, por ser um serviço de interesse público, os Correios estão presentes em todos os municípios. A presença do serviço, na grande maioria das cidades não dá lucro, mas é indispensável. Além de se comprometer com a entrega de cartas e encomendas em todos os endereços urbanos do país, a estatal é a responsável também pela distribuição de leite para famílias carentes, dos livros didáticos para a rede pública de ensino e das provas do Enem. Até 2020, os Correios também ofereciam serviços bancários básicos. Em municípios pequenos, essa era a única opção de acesso bancário e de saque de benefícios da previdência.

Embora o serviço seja dispendioso nos pequenos municípios, o lucro nas grandes cidades não só compensa todos os custos, como gera receita ao Governo Federal. Pelo menos 25% desse lucro é recolhido pelo governo a cada ano. O interesse das empresas privadas, obviamente, é nesse lucro, e não o interesse público. Como seriam assistidas milhares de pequenas cidades num modelo de gestão privada?

O temido monopólio

A empresa possui apenas o monopólio da entrega de cartas e de telegramas, o que representa cerca de metade das suas receitas. Ao contrário do que imaginamos como consumidores comuns, o transporte de cartas continua enorme, com o envio de boletos dos diversos serviços por assinatura. O telegrama também é abundantemente utilizado no meio jurídico, pois o seu conteúdo possui fé pública. Sendo assim, a mensagem recebida pode ser utilizada na justiça, ao contrário do e-mail.

Esses serviços são monopólio estatal por uma questão de segurança dos usuários. Nem mesmo o plano bolsonarista cogita desregular essa função, embora pretenda fazer concessões temporárias à iniciativa privada, o que seria extremamente perigoso para os cidadãos.

O envio de encomendas sempre esteve sujeito à concorrência. Mesmo assim, toda loja virtual prefere o serviço público, mais barato e seguro que os demais. Nenhuma outra empresa de entregas cobre as pequenas cidades e as periferias além dos Correios, pois, como já foi dito, o oferecimento desse serviço não dá lucro. Quando essas entregadoras recebem um objeto com um destino desses, eles são postados nos Correios. Você paga mais caro pra que essas empresas simplesmente postem a encomenda na estatal.

Os carteiros são bolsonaristas?

Dizer que os funcionários dos Correios são bolsonaristas e que apoiam a privatização é uma grande mentira. A esmagadora maioria dos trabalhadores são contra a privatização e votam nos partidos de esquerda, principalmente no PT. Os sindicatos refletem isso: são todos dirigidos pelo PCdoB ou pelo PT. Nem mesmo os metalúrgicos têm um grande desempenho da esquerda em seus sindicatos. O sindicato dos metalúrgicos de São Paulo, por exemplo, sempre esteve nas mãos da Força Sindical.

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Desde os anos 90, quando surgiram os sindicatos de ecetistas, a categoria é, ao lado dos petroleiros, a mais politizada e mobilizada do país. No período anterior, a empresa era militarizada, o que impedia qualquer tipo de organização política. Desde então, é difícil conhecer um trabalhador dos Correios que nunca tenha participado de greves e mobilizações populares.

É verdade que os funcionários foram muito afetados durante o governo de Dilma Rousseff, com a privatização do plano de saúde e reajustes na previdência complementar, que oneraram grande parte do holerite de cada um. Isso pode ter despertado alguma antipatia com o PT, provavelmente. O que se seguiu, no entanto, com a reforma trabalhista e da previdência durante os governos Temer e Bolsonaro, foi um ataque muito maior à categoria. Trabalhador não é burro!

Mesmo que esse argumento fosse em alguma medida verdadeiro, veremos como a privatização prejudica toda a população e não apenas os trabalhadores ecetistas.

Vantagens da gestão pública

A proposta de gestão privada dos serviços em parte já foi desenvolvida. Lá se vão dez anos sem concurso para os Correios e, por conta da falta de funcionários, em alguns locais a entrega de cartas já foi terceirizada, com trabalhadores temporários. O resultado disso foi que, nas periferias, as cartas eram encontradas em lixeiras e bueiros em vez de serem entregues. Isso gerou inúmeras denúncias, que não deram em nada. Como em qualquer serviço terceirizado, a empresa some, outra assume a licitação e faz a mesmo péssimo serviço novamente.

A logística aplicada a um país como o Brasil não é uma coisa simples. Os funcionários da ECT são muito bem treinados e disciplinados. É uma questão de responsabilidade social. O curso preparatório dos funcionários pode levar até três meses para ser concluído e, quando as coisas ainda caminhavam bem, cursos de reciclagem eram feitos todos os anos. O carteiro adota uma região e cria vínculos com a vizinhança. Os serviços privados, por sua vez, nem mesmo contratam seus trabalhadores, quanto mais lhes dão algum treinamento. Um tipo de serviço desse aplicado à entrega de cartas em todo o território nacional seria um desastre. Na melhor das hipóteses, todas as correspondências passariam a ser registradas e nós pagaríamos muito mais caro pelo simples recebimento de boletos.

Outro dado importante é o fato de que os empregados dos Correios são concursados, embora regidos pela CLT. Isso significa que a contratação se dá de maneira impessoal, respeitando princípios constitucionais. Além disso, hoje o concurso público no Brasil também é uma ferramenta de combate à desigualdade racial devido às cotas.

“Destinatário ausente”

Grande parte das reclamações estão relacionadas a essas duas palavrinhas. Muita gente não conhece a logística dos Correios e faz mal uso dos serviços. Sabemos que a maioria das pessoas não ficam em casa durante o horário comercial. Sendo assim, as agências oferecem o serviço de “posta restante”, para retirada da encomenda na agência mais próxima. Certamente haverá uma próxima do seu endereço.

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Também é muito comum quem confunda o carteiro que entrega cartas com o carteiro motorizado. Dessa maneira, se a pessoa recebeu cartas, ela se pergunta por que a encomenda não veio junto. Na verdade, eles são trabalhadores de unidades totalmente diferentes. O itinerário é diferente, os horários são diferentes. É muito provável que o carteiro que carrega a bolsa de cartas tenha um trajeto fixo, mas é quase certo que as entregas motorizadas passem pelo mesmo local em horários totalmente diferentes a cada dia.

O índice de entrega dos Correios é de 97%. É inacreditável! Vai ser difícil achar uma empresa em qualquer segmento com um índice de eficiência desse. Se, mesmo assim, a sua encomenda sumir, você deu sorte, porque os Correios têm o único serviço de entregas que oferece seguro a 1% do valor declarado. Só em 2016, a empresa devolveu 201,7 milhões de reais aos clientes.

O grande número de indenizações pagas por encomendas extraviadas ou roubadas jamais seria cumprido por uma empresa privada. Nos Correios, a solicitação é bem simples. Basta preencher um formulário online com os dados bancários. As seguradoras privadas, por sua vez, cobram um valor muito maior pelo risco e pedem uma série de documentos para comprovar o valor do item.

Se a sua encomenda atrasou, é bem provável que a loja virtual pediu o ressarcimento do valor pago pelo envio, mesmo que não tenha restituído esse dinheiro a você, então peça. Uma eventual gestão privada pagaria menos indenização, mas não porque haveria menos assaltos e falhas na triagem, e sim porque dificultaria a obtenção do ressarcimento. Além disso, as empresas privadas mais populares cobram até 13 vezes o valor cobrado pelos Correios pelo mesmo serviço de entrega.

E a corrupção?

A corrupção e o peculato são crimes contra a administração pública. No entanto, pouca gente se atenta ao fato de que toda corrupção surge de um corruptor, que são pessoas fora da empresa. A fraude no Postalis, a previdência complementar dos Correios, por exemplo, só foi possível porque o fundo é privado. Mesmo assim, o caso não representou prejuízo para a população em geral, como dá a entender quando os escândalos são divulgados na imprensa. O desfalque comprometeu exclusivamente os holerites dos funcionários da empresa, que precisaram cobrir o rombo com o aumento da contribuição mensal. As finanças das empresas públicas, por sua vez, possuem a vantagem de serem disponibilizadas na internet e, eventualmente, auditadas.

Todos os escândalos de corrupção são fruto dos poucos funcionários não concursados, os membros da direção, suscetíveis ao lobby. Isso, numa gestão privada, seria uma relação direta e facilitada, sem empecilhos legais. Como já foi dito, a corrupção e o peculato só são crimes na administração pública. Ou seja, o crime não compensa, porque, quando compensa, muda de nome.

Outro exemplo relevante são as fraudes aplicadas pelas agências franqueadas dos Correios, que não são nada mais do que agências concedidas para a iniciativa privada. Em 2019, a operação Inverted Jenny, da Polícia Federal, identificou que essas agências privadas utilizavam selos falsos. O dono da agência cobrava a postagem, mas esse valor não chegava à ECT. Não bastasse isso, todos os erros operacionais dessas agências são assumidos pelos Correios, que paga a indenização dos atrasos causados pela lentidão no despacho das franquias. Aliás, se você precisar utilizar algum serviço dos Correios, evite essas agências identificadas como “AGF” ou “ACF”.

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Os Correios não são deficitários

Em 1995, os Correios somaram 85 milhões em prejuízos. No entanto, em todos os outros anos a empresa foi uma importante fonte de receita para os cofres públicos. Somente no período compreendido entre 2001 e 2013, foram mais de 3 bilhões de reais destinados à União.

Se observarmos as demonstrações contábeis da empresa, podemos ver ainda prejuízos entre 2013 e 2016. Uma parte desses resultados, porém, é artificial, decorrente de uma regra contábil que inflou o fundo de benefícios pós-emprego da empresa. Parte do prejuízo, na verdade, não existe. A direção da empresa, por motivos não declarados, decidiu triplicar o valor que deveria ser retido em caixa para cobrir despesas futuras com aposentadorias. Prova disso é que o balanço patrimonial da empresa em 2017 supera o de 2012 em cerca de 3 bilhões de reais.

Um motivo real para o enorme prejuízo acumulado em 2015 e 2016 seriam as despesas com o Postal Saúde, ente privado que assumiu a administração do Correios Saúde, plano de saúde exclusivo da empresa. Nos dois anos citados, a operadora custou 3,4 bilhões a mais do que o previsto, sem oferecer maiores explicações.

Além disso, outras despesas adicionais surgiram em razão das medidas neoliberais impostas após 2014, com a terceirização da operação de triagem e os planos de demissão voluntária. Os dirigentes da estatal, majoritariamente do PMDB na época e, posteriormente, do PSD, chamaram isso de “modernização”.

A tendência nos demais países

Nos Estados Unidos, o Postal Service (USPS) é parte integrante do governo, tendo como missão fornecer o acesso universal a sua rede de entrega de encomendas, a única a oferecer os serviços em todos os pontos do país. A entrega de cartas é feita exclusivamente pelo USPS. No Canadá, a entrega de cartas também é monopólio da empresa estatal, Canada Post. Na Rússia, é a Russian Post, também estatal.

Em países muito grandes, somente as empresas estatais têm capacidade de cobrir todo o território com a entrega de encomendas.

Mesmo em países onde o setor foi entregue aos capitalistas, foi necessário manter o controle estatal do serviço durante o processo. Na Alemanha, esse controle durante a transição vigorou por 15 anos. Na Argentina, a Encontesa foi privatizada em 1997 e teve que voltar a ser estatizada em 2003. E já peço desculpas pelo título, pois o governo português foi praticamente obrigado pelo Banco Central Europeu e pelo FMI a privatizar o serviço em 2013.

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Dos 206 países do mundo, apenas 8 têm serviços postais sob controle privado. É pouco inteligente entregar um serviço sigiloso ou de logística desse porte a grupos privados, obviamente, ainda mais estrangeiros. Se o critério fosse simplesmente privatizar o que só nos dá despesas, porque nunca cogitaram privatizar o Exército, por exemplo? Será que teríamos menos gastos com leite condensado se isso acontecesse?

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