Em tempos de barbárie, o liberalismo sobrevive como parasita grudado ao projeto de poder fascista

por Matheus Dato
A nova geração de brasileiros, ou ao menos a mais nova, acostumou-se em sua infância com um sistema político institucionalmente dividido entre dois partidos políticos contemporâneos: o Partido dos Trabalhadores e o Partido da Social Democracia Brasileira, PT e PSDB para os íntimos.
Em certo sentido, o cenário eleitoral federal apresentava apenas duas possibilidades concretas de um partido à esquerda e um partido à direita; certamente pode-se discutir até que ponto a política proposta e implementada pelo Partido dos Trabalhadores conservou-se ideologicamente no campo da esquerda, mas não havia quaisquer dúvidas ao eleitor médio e, importante, à classe dominante, que ambos os partidos operariam em polos diversos. Falaremos sobre as experiências políticas da presidência para esclarecer melhor esses fatos.
A realidade é que foi necessária uma operação de guerra aberta do imperialismo para que o PT pudesse ser eliminado da cena no Brasil; a movimentação de superestruturas de mídia, polícia, tribunais, ministérios públicos e parlamentares mobilizou bilhões de dólares no intento de sacrificar o Partido dos Trabalhadores perante a opinião do povo brasileiro e sequer conseguiu realizar plenamente o seu objetivo. É sintomático que os meios de se afastar o candidato petista à presidência da República precisem ser dramáticos ao ponto de exigirem fraudes eleitorais elaboradas, processos inquisitoriais, prisões ilegais e ameaças de golpes militares, tudo para este mesmo candidato retornar ao cenário como franco favorito.
Por outro lado, é perceptível a qualquer análise do problema que o PSDB decretou falência nacional após o fiasco humilhante de 2014. Ainda que concentre imenso poder na região de São Paulo, o partido tucano há muito deixou de ser uma opção viável no cenário acirrado da luta de classes do Brasil. A pandemia agravou fortemente esse quadro: com a duplicidade de demonização dos governadores e prefeitos, refúgio de PSDBistas em fim de carreira, e apego dos parlamentares tucanos ao projeto político-econômico de Bolsonaro, todos os operadores verdadeiramente importantes do processo de poder descartaram flagrantemente este partido como opção viável de uma ofensiva burguesa mitigada, sem a histeria fascista do bolsonarismo, embora carregue a mesma bandeira e atenda aos mesmos interesses.
Para entendermos melhor como adoeceu um dos principais representantes da burguesia brasileira, precisamos retroceder à Assembleia Constituinte para traçar o perfil que determinou as condições atuais. Precisamos ressaltar que o quadro em 1988 encontrou um Partido dos Trabalhadores que se dispunha a reconstruir a esquerda arrasada pela repressão terrorista do regime militar, ao passo que o MDB, oposição legalizada deste processo, se desfazia em correntes antagônicas e expressava em seu interior as contradições entre os setores mais avançados da classe trabalhadora, enormemente proletarizada pela ditadura e pela transição conservadora, e as classes burguesas e pequeno-burguesas que entendiam o MDB como um partido destinado a cumprir a transição democrática-liberal até o fim, sem mais pretensões além de gerir este sistema.
Enquanto se revolvia uma esquerda abrigada pelo MDB a partir de 1964 em direções mais radicais e independentes (composição de refundação do Partido Comunista Revolucionário e Partido Pátria Livre, hoje fundido ao PCdoB), um centro se destacava como ambiente disposto a operar os interesses da fração dominante da ocasião: o atual centrão é filho desta gama heterogênea de parlamentares MDBistas; por outro lado, era necessário garantir a hegemonia de um setor burguês formalmente comprometido com a democracia liberal, isolando os últimos brados do ARENA, partido da ditadura, e inviabilizando uma condução proletária do processo de redemocratização. É esta a tarefa precípua que Fernando Henrique Cardoso, André Franco Montoro, Mário Covas, Tasso Jereissati e outros pretendiam cumprir ao fundar o PSDB em 25 de junho de 1988.
Com a transição conservadora consolidada e hegemonizada por este bloco, a remoção de Fernando Collor de Melo, a composição com Itamar Franco e a posterior eleição e reeleição de FHC foram fases de um mesmo processo com uma estratégia clara: submeter o Brasil à cartilha econômica do capital financeiro, envolvendo a desindustrialização do país, aumento de compromissos com o FMI, privatizações e precarização das condições de trabalho e seguridade social. Nesse modelo, o governo Cardoso firmou de maneira definitiva a tônica tucana de governar: um governo para os mais ricos com matizes constitucionalistas.
O processo de acirramento da luta de classes no Brasil que se iniciou com a eleição de Lula em 2002, um ciclo democrático-popular até 2014 e a queda do governo eleito de Dilma Rousseff por meio de um golpe não poupou nenhum âmbito da sociedade brasileira. Não era possível que o país corresse qualquer risco de emancipação provisória, ainda que nos mais estritos limites da institucionalidade burguesa.
A crise econômica do capitalismo iniciada em 2008 não deixou espaço a subordinados dependentes do grande capital como o Brasil: as dinâmicas antigas de superexploração da força de trabalho, destruição da democracia e fascismo voltaram à ordem do dia. Pouco a pouco, o quadro pintado pelas mãos dos donos do mundo revelou a imagem de Jair Messias Bolsonaro como única opção viável.
É em virtude dessa conjuntura que acirra às últimas consequências a lógica violenta e ditatorial da luta de classes que um partido disposto a vender ilusões democráticas como o PSDB não pode prosperar. Enquanto torna-se claro a qualquer militante honesto de esquerda que a barbárie já é realidade, a máquina de propaganda fascista vendeu aos eleitores e agentes da política a ideia, correta do ponto de vista objetivo, que o fascismo é a única forma de manter intacta a estrutura material da sociedade capitalista.
Isso não significa, claro, que liberais sedutores não dancem bem a música da extrema-direita, afinal, a Folha de São Paulo e a Rede Globo podem ter se esquecido inadvertidamente, mas o povo se recorda da campanha #BolsoDória em 2018 e não duvida nem por um segundo que o rico assustado bate à porta do assassino fascista sempre que necessário.
Nestas condições atuais, o PSDB só pode existir e prosperar no ambiente controlado que construiu para si no estado de São Paulo, no laboratório de miséria perfumada em que transformaram o centro econômico do Brasil. Em tempos de barbárie, o liberalismo sobrevive como parasita grudado ao projeto de poder fascista, sugando as últimas gotas de sangue da política econômica de devastação antes de finalmente morrer. Enquanto durar a crise, os tucanos vão permanecer chafurdando no seu lugar histórico: a lata do lixo.